
Findava o ano de 1963, Brasil governado por João Goulart Jango, vice-presidente eleito em 1960. Assumira a presidência no lugar de Jânio Quadros — o homem da “vassoura na mão” — que renunciara, alegando pressões de “forças ocultas”.
O Ginásio Professora Maria Ferreira da Silva já partia para sua terceira turma de alunos, a iniciar em março de 1964. Era o deslanchar da educação em nossa Nova Soure; afinal a terceira turma estava garantida e o sucesso já não era ponto de incerteza, era factível, estava desenhado, viria com certeza — como viera e ficara.
A direção do Ginásio abrira a concessão de admitir que novos alunos do Grupo Escolar Dom Pedro I, mesmo não tendo prestado exames no prazo normal, participassem do Exame de Admissão do Ginásio em “segunda época”.
Naquele tempo alunos reprovados no primeiro momento — normalmente provas efetuadas em dezembro de cada ano — podiam tentar nova chance na “segunda época” no mês de fevereiro do ano seguinte. Era assim que a banda tocava na educação em todo Brasil.
O menino estudava no Grupo Escolar Dom Pedro I, única escola pública na cidade. Naquele ano, fora aprovado com louvor na conclusão da quarta séria do curso primário. Ainda teria que cursar o quinto ano para, então, se habilitar ao exame de admissão ao curso ginasial.
Sua professora do curso primário, Maria do Carmo Fonseca Biscarde, mandara chamar sua mãe e, após conversarem bastante sobre seu aluno, professara: “…… pode mandar ele fazer o exame de admissão; tenho certeza que ele passa. Suas notas são das melhores aqui na escola, embora não tenha boas notas em comportamento pois tagarela com todo mundo o tempo inteiro”.
E prosseguira a professora: “ …… a letra dele não é boa — mesmo com o caderno de caligrafia que tem e fazendo os deveres de casa todos os dias. Mas escreve certinho nos ditados e tem apresentado poucos erros de português; conjuga bem os verbos, sabe o que é o sujeito, o predicado que verbal, nominal e verbo-nominal; já distringue os adjuntos adnominal e adverbial. Conhece bem ciências, geografia – sabe todas as capitais dos Estados e a maioria das capitais dos países da América do Sul – não tem muita afeição por história; mas conhece o básico para prestar os exames. A senhora não tenha receio, estou lhe dizendo.
Na matemática é muito bom mesmo: sabe as quatro operações e até já faz conta de multiplicar e dividir de três letras – três casas – após as operações tira sempre a prova dos noves — noves fora — e a prova real. Já conhece e resolve, porcentagem, juros simples e compostos e regra de três e de sociedade. Resolve problemas com frações e sabe usar o MDC (máximo divisor comum) e o MMC (mínimo múltiplo comum) adequadamente. Pode acreditar, ele está preparado. Minha turma é muito boa e ele está entre os melhores”.
A matriarca, coitada, estudara lá no Paiaiá apenas as primeiras letras e as quatro operações; simplesmente. Voltara da escola do seu filho bombardeada com tanto cabedal de estudo que aquela figurinha acumulava e que não era do seu conhecimento, absolutamente. Mas, orgulhosa; orgulhosa sim de ter escutado aquele depoimento sincero de uma mestra comprometida com a educação dos alunos que lhe eram confiados.
Em casa, aguardando a chegada do menino — havia saído para encontro com seus colegas de brincadeiras — chorara, silenciosamente, lembrando o depoimento professoral. Prometera a si mesma que o encaminharia ao Ginásio para o Exame de Admissão — como houvera se comprometido com a professora dele — assim faria.
Aquele menino esguio, estatura mediana, pesando no máximo uns trinta e cinco quilos, contava já com doze anos, havia completado no mês de novembro do ano findado.
Ao chegar em casa, após a brincadeira da tarde com seus amigos — preferencialmente da vizinhança da rua onde morava, não era autorizado a ir longe dali — fora chamado por sua mãe.
Amanhã você vai ao Ginásio fazer requerimento para prestar o exame de admissão, dissera sua mãe em tom imperativo e sem abertura de qualquer chance de argumentação.
O garoto não se dera por vencido: “…mais mãe eu só tenho doze anos e nem completei o quinto ano primário. Rumão de Seu Ricardo e Cardoso de Bento me disseram que eu só posso fazer admissão no final do outro ano, no mês de dezembro. Eles dois já fizeram e passaram …..”
Você não me respeita não?! Dirigindo-se em sua direção a matriarca lhe inquire com rispidez. Pode ir se preparando. Amanhã José de Armando e Luiz Antonio de Ariston estão vindo do Paiaiá para também fazerem seus requerimentos. Já falei com os pais deles e eles vão prestar o exame de segunda época também.
O menino tinha visto vários de seus ex-colegas serem aprovados no exame de admissão ao ginásio, já tinham idade suficiente, já haviam sido aprovados no quinto ano primário. Estavam aptos a estudarem no Ginásio e ele com um certo sentimento de saudade e tristeza. Saudade pelo fato de não encontrar aqueles amigos-colegas no próximo ano na escola; tristeza porque ficara atrasado em relação a eles. Não iria estudar no Ginásio; só no outro ano.
Brincadeiras mesmo só depois das aulas e, agora, bem menos. Os seus amigos daquela rua já estavam com responsabilidades maiores na vida escolar. Havia, no entanto, um fio de alegria; seus primos iriam fazer o exame de admissão e poderiam ser seus novos colegas de escola. Eles estudavam na Escola Rural do Paiaiá, estabelecimento de educação que, na década de 50 do século passado, tivera no seu quadro de professores a mãe de uma cantora-astro da atualidade, de sobrenome Sangalo.
Chegado fevereiro de 1964, a vida política brasileira estava em ebulição. Uma boa parte da sociedade — políticos ou não, intelectuais ou não, militares ou não — nutria receio de que o Presidente se inclinava para o lado daqueles que tinham como lema o comunismo, quer internamente quer internacionalmente, era o que se propalava nas rádios, nos jornais e nas revistas.
O menino, alheio a tudo aquilo, só pensava no requerimento fizera para prestar Exame de Admissão; na possibilidade do insucesso e da possível reprimenda que lhe poderia ser imposta — provavelmente uma surra mesmo (uma pisa, termo como era usado naquele tempo). Como se diz no meio sertanejo “além de queda, coice”, não bastaria o infortúnio da reprovação ainda estaria sujeito a castigos físicos — tudo isso normalíssimo para a época.
Provas marcadas, em dias diferentes, primeiro as escritas, depois as orais. Assim se processavam os exames naqueles tempos. Era necessário mostrar que tinha conhecimento pleno das questões que lhe fossem apresentadas.
Na língua pátria tivera como examinadora a Diretora do Colégio, professora Maria de Lourdes Ferreira da Silva – Dona Morena; na matemática o Cirurgião Dentista, com baixa recente no Exército Brasileiro, no posto de segundo tenente, Dr Carmo Biscarde Filho (Dr Carminho como lho chamavam); na geografia e nas histórias: geral, do Brasil e da Bahia — naquela época estudava-se os três níveis separadamente — a professora Iraildes Belchior de Souza, vinda do vizinho Estado de Sergipe para ensinar em escolas do município.
O Exame, as provas aplicadas, o resultado.
Língua portuguesa: ditado anunciado e o menino a transcrever — no papel pautado, com uma dobra no lado esquerdo medindo em torno de quatro centímetros — o que ouvira da mestra-diretora, se esmerando na formatação das palavras, na pontuação e acentuação (tudo exigido na oportunidade). Conjugara verbos, classificara-os, identificara o tempo e modo verbais. Determinara o sujeito da oração, o predicado e adjuntos. Na prova oral respondera sobre sinônimos e antônimos; sobre sujeito na oração; classificação dos verbos – tivera dificuldade na pronúncia, dado o significado fonético de alguns deles, como os defectivos e abundantes. Receava assomar com corruptelas das palavras e tascar “defecados” ou “bundantes”, mas dos anômalos não receara.
Aritmética ou Matemática: resolvera problema com frações ordinárias as próprias, impróprias e aparentes – para isto se valera do MMC — e decimais, que dizem tornou–se obrigatória com a Revolução Francesa. Apresentara resultado de uma conta de dividir de três letras (três casas) com as provas real e dos nove. Na prova oral desta matéria pouco lhe fora perguntado, até por que não havia muito a explorar oralmente neste campo, mas respondera sobre medidas de volume.
Geografia: apresentada uma série de cidades para que fosse identificada sua localização nas regiões do Brasil. Norte, Sul, Sudeste, Nordeste; identificação de climas no mapa do território brasileiro; tudo respondido direitinho e com segurança. Na prova oral respondera sobre as regiões brasileiras onde predominava o plantio de cana-de-açucar; quais os rios que banhavam algumas cidades ou estados brasileiros e onde se situava o famoso rio Nilo.
História: lembra que estudara por um livro que tinha como autor Victor Mussumeci a parte de história geral e do Brasil e apreendera muita coisa; afinal se deparara com nomes estranhos e interessantes como Nabucodonosor, Mesopotâmia (terras entre rios); nomes de faraós, desde Ptá — Deus criador e divindade patrona da cidade de Mênfis,—no período lendário — 5.400 a.C a 5.340 a.C — , passando pela Dinastia IV com Quéops, Quéfren e Miquerinos, até a Dinastia Ptolemaica —305 a.C a 30 a.C — com os Ptoloméus I a XV e outros nomes mais estranhos possíveis.
Vieram as perguntas na prova escrita e não tivera dificuldade de responde-las. A maioria delas de história geral. De história do Brasil somente sobre a independência do Brasil do Reino de Portugal e proclamação da República. Mas, na prova oral, experimentara a rigidez da professora Iraildes: ela não dava tréguas e ela havia de responder de imediato e sem gaguejar. E vieram as perguntas: a) os visigodos saquearam Roma sob o comando de Alarico, Teodósio ou Honório? b) quem assumiu o governo brasileiro com o retorno de Dom João VI a Portugal?
Não é vergonha dizer que errara uma das respostas. Jamais ouvira falar dos visigodos e muito menos naqueles homens citados: Alarico? Quem fora ele? Teodósio? Honório?. Aqueles nomes soaram muito estranho em seus ouvidos.
Terminadas as provas, numa tarde de quarta-feira, o menino fora pra casa meio que receoso. Afinal nas provas orais errara uma pergunta em história e gaguejara muito em geografia. Em língua portuguesa saíra-se muito bem e em matemática não se fizera de rogado respondera todas e ainda perguntara se tinha mais alguma pergunta a ser feita — ousadia e exibicionismo daquele pirralho. O professor, embora rígido e disciplinador, sorrira e lhe parabenizara pela altivez — grande lição aquela.
Na quinta-feira à tarde fora em busca do resultado. Quase é reprovado por conta do baixo aproveitamento em geografia e história; em tese fora reprovado nestas duas matérias. Sua redenção fora o resultado das notas de português e matemática; ajudaram muito no cômputo geral. Passara arrastado – como se dizia antigamente – nota final cinco! Mas, ora bolas, passara. Iria cursar o Ginásio, logo ali no mês de março, faltavam poucos dias.
A alegria lhe invadira; não procurara saber de nada, quando seria a matrícula, como e onde, quais documentos seriam necessários, etc., etc.
Partira a toda. Dum só fôlego chegara em casa; ofegante dera a notícia à matriarca: mãe passei! Vou estudar no Ginásio!
Nem aguardara para ouvir as palavras de satisfação da matriarca, nem viu o seu (dela) semblante de orgulho e alegria pela vitória do seu menino. Trocara de roupa e, imediatamente, se dirigira ao campo de futebol. Era dia de treino do Santos Futebol Clube daquela cidade — dirigido por um homem alto, amigueiro, falastrão e apaixonado por futebol: seu Zé Bambão — clube do qual era torcedor e admirador de muitos dos seus jogadores, inclusive três deles seus vizinhos de rua, Bicudo de Seu Zé Dantas, Carlos e Iôia de Zuca de Pomba.
Admirado com a performance daquele time de futebol, sorridente com o sucesso, viera trocando ideias com amigos sobre as jogadas dos seus craques e confiante na vitória, no domingo próximo, contra o Flamengo – dirigido por Dr Carminho – e que tinha nos seus quadros um dos seus maiores amigos e colega de escola Toinho de Ariston e o inesquecível Esmeraldo de Totonho de Olímpio – o maior frente de zaga que vira jogar no futebol amador.
Qual não fora sua surpresa ao chegar em casa encontrar a matriarca furiosa: a matrícula começara naquela mesma tarde e só iria até o dia seguinte. A diretora do Ginásio, sua comadre, zelosa com aquela criaturinha frágil e de pouca experiência — o menino vitorioso — mandara lhe avisar que seu filho não comparecera para a matrícula.
Resultado da inobservância dos seus deveres de estudante: levara uma bela surra por não ter tomado as providências de matricular-se no primeiro momento; era, no mínimo, sua obrigação.
Não bastara ter sido vitorioso no Exame de Admissão ao Ginásio, era necessário que cumprisse com o seu dever de estudante; era exigível que cuidasse primeiro da obrigação, depois do lazer.
Tonho do Paiaiá.
Reminiscências de um menino estudioso, porém relapso por conta da alegria.

A primeira investidura de Zé Ramos (José Ramos de Souza 1921-2002), no cargo de Prefeito do Município de Nova Soure, ocorrera em 1959, após Eleições ocorridas em 3 de Outubro de 1958, sucedendo ao Dr Manelito (Emmanoel Ferreira da Silva, cirurgião dentista de profissão e político por opção, com quem tive a honra de privar de uma amizade sincera).