A motocicleta, o carona, o perdão, uma amizade duradoura!

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Estávamos n’uma época de fartura de pastagens. O inverno tinha sido dos melhores e era momento de rotacionar o rebanho nos pastos para melhor aproveitamento da comida.

O gado de Seo Vicente – Vicente da Cajuba, meu dileto e saudoso compadre – ficava distribuído, normalmente, nas três fazendas: a Sacambira, no município de Tucano (esta fazenda pertecera, no passado, ao Seo Dedé de Mário, dono do principal Posto de Gasolina de Nova Soure); a Santo Antonio (pertencera a Seo Ataíde, esposo de Dona Belinha da Pensão; coincidentemente hoje a mim pertence, adquirida diretamente do meu compadre) e no complexo da Baixa do Cardoso, situado parte no município de Cipó e parte no de Nova Soure.

As terras da Sacambira e da Santo Antonio contavam com pastagens de fina qualidade – geralmente capim pangola – digitaria decumbens – nomes comuns: Transvala (Brasil), Capim pangola – pangolinha, como é mais conhecido em nossa região, além de muitas leguminosas palatáveis e desejadas pelo rebanho.

Para cuidar daquele rebanho, a pessoa escolhida por Seo Vicente fora Seo Aririta, nascido e batizado nas terras da Lagoa, no Município do Inhambupe, com o nome de Antonio José — vaqueiro experimentado e extremamente dedicado ao ofício. Necessário frisar que a escolha fora em virtude dos laços de amizade e demorada convivência na antiga Fazenda Gavião, produtora de frutos — principalmente os cítricos – no município de Entre Rios.

Bem, Aririta era a pessoa que eventualmente cuidava da movimentação do rebanho bovino de Seo Vicente da Cajuba. Ora trazendo o gado da Sacambira para o complexo Baixa do Cardoso; ora deste para a Santo Antonio e vice-versa; sempre rotacionando os animais para o melhor pastoreio, aplicando esta administração pecuária com maestria e dedicação invejáveis.

Por vezes, quando Seo Zé, trabalhador de Seo Vicente, não podia lhe auxiliar na transferência daquele rebanho, Aririta se valia da contratação de Zé Preto de Gutinha – vaqueiro de escol, amansador de bravos, respeitado pela sua habilidade em tomar de um potro ou uma mula, ainda crus, e entrega-los aos seus donos com rédea invejável e obediência singular para montaria, fosse qual fosse o montador, experiente ou não.

Aririta era sempre o comandante da movimentação pecuária.

Mas, o Zé Preto de Gutinha tinha seu lugar: era verdadeiramente respeitado e escutado no planejamento da movimentação do rebanho e nas ações a serem adotadas durante o trajeto entre as diversas fazendas de Seo Vicente.

Neste episódio, Aririta fora instado a transferir trinta e cinco garrotes —todos cuiudos, com idade média de três anos, peso aproximado de catorze arrobas — da Fazenda Sacambira para a Santo Antonio; nesta o pangola estava viçando e era momento de jogar o gado naquela capineira para só tirar de lá diretamente para o abatedouro.

Empreita acertada com Seo Vicente. As montarias já estavam na Sacambira, Seo Zé as levara um cavalo e uma mula. Restava aos vaqueiros cuidarem dos arreios, da indumentária característica aplicada à ocasião, do aió com o feijão, farinha e carne assada para comerem na viagem – haviam de cortar alguns tabuleiros afora, após a passagem do rio Itapicuru na divisa entre os municípios de Tucano e Cipó, até alcançarem o destino final: a Santo Antonio.

Seo Vicente, como tinha que laborar no dia seguinte, na velha, cantada, prosaeada e redentora Cajuba, preferira levar os dois profissionais vaqueiristas no dia anterior, para, dormindo na Sacambira, saírem ainda na madruga – melhor horário para se tocar gado – com o rebanho destinado a fazenda Santo Antonio.

Viagem sem maiores percalços: cruzaram o rio, venceram o tabuleiro do Mocó, adentraram as terras das Pedrinhas de Zé Ramos, venceram o riacho Natuba e apontaram na direção da Santo Antonio.

A viagem até ali não fora lá tão fácil assim. Labutar com boi cuiudo não é coisa para amadores. São birrentos, brigam entre si, empurram uns aos outros – próprio dessa classe de bovinos.

Viagem indo dentro do planejado, mapeado e desejado pelos dois vaqueiros. Zé Preto, mesmo incomodado com algumas atitudes adotadas por Aririta, convivera em harmonia com este naquela empreitada.

Sabiam que, após rumarem no sentido direto da Santo Antonio, iriam encontrar estrada de asfalto, corredores — as vezes largos, as vezes estreitos — cercas boas e cercas sofríveis; caminhos retos e tortuosos.

Não deu outra, leitores!

Os bois, ao passarem em frente ao curral da matança – nome comum dado a Matadouros Municipais – como que a adivinharem que um belo dia havia de para ali voltarem em viagem final, começaram a criar problemas para seguirem em frente.

O trabalho dos vaqueiros dobrara a partir dali. Briga dali, briga daqui, briga d´acolá; refuga daqui, refuga d’acolá e os profissionais tocando o gado – “tão pensando que são mais de que nóis; num são não seus mequetrefes; vamiceis tão sendo tocados pur dois homi de verdade; vamiceis chega lá pur bem ou pur má”, bradava a todos pulmões Zé Preto de Gutinha.

Lá pelas tantas, emparelhando com as terras da fazenda Siscalha, de propriedade de Seo Zé Moreira ou José Moreira da Silva Filho. Como o próprio nome denuncia, filho de José Moreira da Silva, o Capitâo Cazé — embora civil, possuidor deste título designativo, obtido pela nobreza ostentada; é próprio da época — proprietário da Fazenda Cruz, um dos últimos bastiões de preservação da história da nossa terra (a casa da fazenda, de existência sesquicentenária ou mais, é tomada como fiel testemunha de tal preservação), a boiada resolvera demonstrar sua insatisfação, sua pretensa força frente aos vaqueiros.

Os animais, tocados por aqueles dois “doutores de vaqueirama”, começaram uma rixa bovina desenfreada; sem limites, sem precedentes. Os dois vaqueiros se assustaram, mas não frequejaram.

Resultado da insubordinação bovina: derrubaram umas trinta braças de cerca da fazenda Siscalha, invadiram a propriedade alheia, deram um imenso trabalho aos vaqueiros para retornarem com eles aos corredores que davam até a Santo Antonio.

Era preciso chegar ao destino planejado para aquela boiada. Não havia tempo para consertar as cercas da fazenda de Seo Zé Moreira. Ficaria p’ra depois, se fosse o caso. Ou, então, Seo Vicente que se houvesse lá com o dono da Siscalha e acertasse como resolver o estrago, não cabia a eles, naquele momento, cuidar da solução requerida para o caso; o objetivo era entregar a boiada na Santo Antonio, para o pastoreio que fora designado.

Dia seguinte, Seo Zé Moreira visitando suas fazendas – como fazia regularmente – se deparara com o estrago que os bois fizera à cerca da Sicalha.

Pesquisa daqui, pesquisa dali, fora informado de que Aririta passara com uma boiada, ali no pé da sua cerca, no dia anterior.

Pronto. Descoberto o responsável pela ocorrido, Seo Zé Moreira aguardara ser procurado por Aririta – não conhecia a pessoa, mas fora informado de quem se tratava e de quem era o gado – ou que este providenciasse o reparo da cerca o que, obviamente, não ocorrera.

Se Aririta não tivera competência para dar côbo ao gado que levava, era problema dele. Mas, a cerca da Siscalha não podia ficar, daquela forma, ao chão e abandonada. Era preciso que o responsável por aquela situação reparasse o ocorrido.

Aririta, com outra ocupações que não a da lida com gado, não dera muita importância ao ocorrido – não por falta de responsabilidade, mas pelas obrigações de cuidar das empreitas na Fazenda Cajuba e atender aos seu contratante.

Mas, Seo Zé Moreira não aceitava e nem aceitou aquela atitude, até que lhe fosse explicado o acontecido. Não ficaria refém de quem quer que fosse. Aquela fazenda “tinha dono” como fazia questão de dizer, e não iria ficar ao aberto – tinha consciência de que aquilo era normal na lida com gado – qualquer um estaria sujeito a uma situação como aquela que se lhe apresentara.

Chamou Chico de Quinta – seu fiel trabalhador, ainda desde os tempos do Capitão Cazé – e mandou que fosse reparada a cerca da Siscalha. Afinal a roça era sua e o gado da sua propriedade corria o risco de tomar o corredor e ir bater lá na Cruz, no São Pedro, no Carrapato ou na Barra, todas fazendas de sua propriedade e onde aquele gado tinha costume de pastorear.

Aririta, possuidor de uma motocicleta, corria as roças de Seo Vicente para lhe dar notícias de como estavam os animais que foram trazidos da Sacambira e os que estivessem em hotelaria n’outras fazendas do criador.

Pois bem, o tempo passou; a vida passou e tudo seguiu normalmente dentro dos limites da civilidade e dos costumes do lugar.

Lá um belo dia, Seo Zé Moreira – no seu Jeep Willys Overland do Brasil, modelo 1964 e em estado original de conservação, se dirigira à Fazenda Siscalha com a finalidade de olhar o seu rebanho, correr as cercas e anotar as necessidades daquela propriedade rural.

Ocorre que, aquele veículo já quase cinquentenário, não era o mesmo de quando chegara a Nova Soure, com vigor incomparável e valia impensável. Não deu outra: enguiçara a ponto de não sair do lugar, mesmo depois dos empurrões que lhe foram dados pelos solidários que por ali passavam.

Desânimo, depois de levar o Wllys Overland  – p’ra frente e p’ra trás –, nada daquele Jeep querer pegar e seguir viagem.

Todos desolados, à beira da cerca da Siscalha, esperando um socorro – naquele tempo não contávamos com o difundidíssimo aparelho celular para chamar um reboque ou um mecânico.

Seo Zé Moreira já tinha pensamento formado. “ Vou procurar Tonho de Mamédia, foi ele quem calibrou o carburador deste carro, ainda ontem, e, depois disso, a primeira viagem que fiz foi esta. Ele vai ter de dar um jeito no que fez e me entregar o Jeep funcionando como chegou lá na oficina dele”.

Não demorara muito, aponta um motoqueiro vindo das bandas da Santo Antonio. Era o Aririta, o vaqueiro, o causador da derrubada da cerca da Siscalha.

O vaqueiro-motoqueiro, vendo aquele adjunto, começara a acionar os freios da sua motocicleta. Sabe-se que uma motocicleta não tem frenagem muita boa: risca mais do que estanca.

Moto parada, descera e passou a cumprimentar os presentes: bom dia meus senhores; o que houve? Posso ajudar em alguma coisa?

De lá acorrera Zé Agasaio (na verdade Zé Agasalho, mas como a pronúncia é do protagonista, decidi preservá-la): o Jeep de Seo Zé Moreira inguiçou aqui, já levamo umas quarenta braças pra frente e prá trás e nada no bixiguento pegar. Tamo aqui com as apás (omoplatas) em pitição de miséra.

Claro que Aririta conhecia Seo Zé Moreira – de vista ou por ouvir falar, sabia que ele era o pai de Roberto Moreira – Seo Zé Moreira é que, mesmo conhecendo aquele vaqueiro de vista, não sabia o seu nome.

Aririta, solícito e dirigindo a palavra a Seo Zé Moreira, diz: se o sinhô quisé eu lhe levo pra rua e lá o sinhô procura um socorro melhor; pelo menos sai daqui deste deserto qui a gente num sabe que hora passa um carro.

Seo Zé Moreira, ainda sem saber com quem falava, respondera: nunca montei numa moto e não é na sua que vou montar.

Zé Agasaio, parte em socorro àquele diálogo e assevera: pode ir Seo Zé, Aririta é uma pessoa responsável e só anda devagar na moto dele.

Pois bem, estava desvendado o mistério. Seo Zé Moreira, então agradecido e agora conhecedor da pessoa que causara estrago nas cercas da Sicalha, aproveitara o momento para cumprimentar melhor o protagonista daquilo tudo: então é o senhor que é o Aririta, né?!.

Aririta, incontinenti, apresentara sua resposta: sou eu mesmo!

Carona aceita, viagem empreendida com extremo cuidado, chegado ao destino pretendido por Seo Zé Moreira que, após apiar da moto se dirige ao socorrista: quanto lhe devo?

Oxente Seo Zé, nada não. Intonse o sinhô acha que vou lhe cobrar por uma besteira dessas?, diz Aririta.

Não senhor, esta moto não é minha, sei que lhe custou dinheiro, sei que gasolina tá pela hora da morte; minha obrigação é lhe pagar.

A recusa permanecera e os agradecimentos foram apresentados. Seo Zé Moreira sequer tocara no assunto das cercas derrubadas. Aquilo tudo acabara de ser esquecido; deixado pra lá, como dizemos no nosso sertão.

A partir daquele momento nasce uma amizade, firma e duradoura.

Não sei o desfecho do conserto mecânico do Jeep, tampouco importa a esta crônica.

Soube, depois, que um belo dia os dois novos amigos pararam no posto de gasolina para abastecimento dos seus veículos. Estavam, ambos, indo para as fazendas, cada qual no seu mister.

Após serem atendidos, saíram do ambiente das bombas de combustíveis e começaram a conversar. Papo gentil, sobre a esperança do inverno, plantio de lavoura e capim, sobre pastagens, preço da arroba de boi, cavalos de montaria e de tração.

Conversaram sobre tudo. Mas sobre o episódio da derrubada da cerca pelos bois nem uma palavra sequer. Afinal aquilo fora superado pela gentileza da carona há várias semanas. Dali em diante valia, como valera, a amizade estabelecida entre os novos amigos.

Aconteceu que o papo estava muito bom. Conversaram e esqueceram dos afazeres e também dos relógios: deu meio dia – o sino da Matriz de Nossa Senhora da Conceição tocara as 12 badaladas, era o ritual da época – e os conversantes ali num bate papo proveitoso e interessante, até que o sino da Matriz soou as 6 badaladas da Hora da Ave Maria.

Não lembraram sequer de almoçar ou beber uma água, nada disso; o que importava mesmo era o bate papo, a confirmação de uma nova amizade.

Cairam em si: vixe Maria! Já é a hora das Ave Maria, vamos embora, vamos embora. Até outra hora; depois a gente termina esta conversa, haverá tempo, dissera um ao outro.

E a amizade permanecera até quando Seo Zé Moreira fora vivente nesta terra.

Tonho do Paiaiá.

Dia de Santo Antonio do ano de 2016, relembrando um amigo e homenageando um Antonio — o Aririta.

 

O centenário de Guilherme Dantas Bastos – “Pai Brito”

Pai Brito

Neste maio do ano corrente (2016) completaria um século de vida, se antes não tivesse sido chamado, pelo Pai Celestial, para uma nova caminhada e nova missão, Guilherme Dantas Bastos, meu saudoso pai.

Havia muitas formas de lhe nominarem: Seo Brito, Brito Guarda do Paiaiá, Brito Guarda, Britinho de Cipó.

Nós, filhos, sempre o tratamos Pai Brito. Mas, considerando o linguajar de crianças em formação e/ou alfabetização, chamávamos-lhe “Pai Bito

Nascido nas terras do Rio Quente, município de Ribeira do Amparo, mas criado em Cipó, por ser uma cidade com maiores condições de educação na época.

Era um bom irmão e querido por todos eles, mesmo sendo um dos caçulas da minha avó Sinharinha (Ana Ferreira de Brito Bastos) e meu avô Gilberto de Almeida Bastos. Ele era o penúltimo dos filhos do casal Dantas Bastos.

Quis o destino que eu viesse a contrair bodas com uma menina, mãe dos meus lindos filhos, filha de Dona Marocas – completara 100 anos em março último passado. Dela, Dona Marocas, ouvi relatos de que quando mocinha e meu pai rapazote dançaram muito nas festas da Ribeira do Amparo, arregimentadas por seu irmão Manezinho Guarda, mais tarde, dele colega de ofício no Tesouro da Bahia. Ambos nascidos no mesmo município. Ela no arraial da Boa Hora e ele nas terras confluentes do Rio Quente, dividindo com o município de Cipó.

Homem muito querido, não só pelos seus familiares como também pela comunidade de Nova Soure, especialmente a de São José do Paiaiá, onde trabalhara, constituíra família e morara durante um bom tempo.

Tivera como profissão regular a de Guarda Fiscal do Tesouro da Bahia. Era um cobrador de impostos e trabalhara num pequeno Posto de Fiscalização que havia no Paiaiá, na década de 50 do Século XX.

Mas, era dado a transitar por algumas habilidades pessoais tais como a de seleiro e sapateiro, ambos para consumo próprio. Ele mesmo consertava os arreios dos animais da lida de vaqueiro – adorava cavalgar e ir buscar boi na mata no seu cavalo chamado Ferrinho, sempre vestido a caráter e acompanhado do seu fiel amigo escudeiro Perí, o cachorro rajado que não o abandonava por nada.

As alpercatas de dedo para seus filhos, naquele tempo feitas puramente de couro, alpercatas de tope para uso próprio, ele mesmo as produzia; cinturões, perneiras, gibão, bainhas de facão, bolsas, alforges, lóros, embornais, etc., para tudo isso não se valia de oficiais, usava seus próprios dotes neste ofício.

Ferramentas e materiais sempre bem guardadas: o seu facão corneta finamente embainhado, a faca céza bem amolada, a pedra de amolar, o cavalete de caule de mandacaru, o compasso, a régua, a sovela, a agulha de costurar, o vazador, o martelo, a bigorna; a lixa, o novelo de linha zero, o sebo de boi, a sola, o reio de couro cru, a corda de couro, tudo bem arrumadinho, num quartinho onde depositava seus arreios e onde exercia o ofício auxiliar.

Ainda lembro da minha alpercata – da lavra dele – que chamávamos “de arrasto” feita em couro cru que usei quando menino. Lembrança viva de menino.

Embora naquela época este nome não fosse designativo de profissão, fora também um paramédico. Aplicava injeção. Lembro do caso de uma garotinha que fora mordida por uma aranha caranguejeira (tarântula) e que ele era procurado para lhe aplicar injeções.

Não alisara banco de faculdade, mas era conhecedor e discorria sobre vários temas, a ponto de ter sido um formador de opinião na sociedade onde vivera.

Era um leitor contumaz. Lia muito, obras de grande valor cultural.

Lembro que, quando abrimos o seu bureau de trabalho que mantinha em nossa casa no Soure – a mesma que ainda hoje vivemos – encontramos, pelo menos, duas obras de leitura da sua predileção: uma delas era uma Revista da Seleções do Reader’s Digest (revista americana que passou a circular no Brasil nos anos 40 do século passado) e a outra um livro intitulado O Brigadeiro Eduardo Gomes, Trajetória de um Herói, de autoria do escritor Cosme Degenar Drumond,

Guardei as duas obras comigo durante muito tempo. Reputo meu despertar pela leitura por via destas duas obras. A Revista não preservei, fora logo perdida, mas li muito dos contos americanos nela contidos. O livro guardei-o por muito tempo. Até os anos 90 do século passado estava em meu poder. Emprestei-o a um amigo dele e meu e não me fora devolvido, nem eu procurei busca-lo.

Seu Brito, era muito querido do Paiaiá que o adotara. Chegara a representar a comunidade na Câmara de Vereadores de Nova Soure, eleito que fora pela União Democrática Nacional – UDN, para a legislatura 1955/1958, cessado seu mandato quando da sua morte precoce, em Janeiro do último ano da legislatura.

Nutria verdadeira amizade a muitas pessoas, a exemplo do Seo Pitisco, Seo Bizarro, Zelito de Zé Pequeno – meu padrinho batismal –  Seu Quinha, Seo Zé Pequeno de Sinhá, Antonio Piaba, seus compadres João Paulo, Godinho e Armando, Seo João Pedro e o irmão Seo Ursino – com estes cinco últimos gostava de vaquejar –  e muitos outros que, além de tornar muito extenso o texto se os citasse, não me vem na memória, neste momento.

Da união com aquela menina simpática, com pouco mais de 17 anos, ele 11 anos mais velho que ela, a minha mãe, Maria Ferreira Filha ou simplesmente Mariete, vieram seis filhos: quatro homens e duas mulheres. Cinco deles nasceram no Povoado de São José do Paiaiá e assim anotado nos seus respectivos registros civis de nascimento e um nascera na sede municipal.

Como tenho lembranças daquele homem cordato, solícito, brincalhão, dedicado, sentimental, amado e amante dos seus filhos. Era de uma dedicação ímpar para com seus pimpolhos e incapaz de castigar alguém. Conta minha mãe que, um belo dia ele, com correias finas de couro que as fizera para consertar a sela de montaria, batera de leve no seu filho varão mais velho em repreensão a uma desobediência deste. Ao invés do menino chorar ele é que chorara copiosamente por ter aplicado aquele castigo ao filho.

Um ritual diário, infalível por sinal, marcou em minha mente aquele homem alto, esguio, cabelos lisos e pretos, sempre bem barbeado. Gostava de usar chapéu de baeta, provavelmente o Ramenzoni XXX Cury.

Ao meio dia, todos os dias úteis, ele vinha do trabalho e nós, os três meninos mais velhos ficávamos a lhe esperar na porta da rua. Ao descer no beco da casa de Seu Carmo (Carmo Biscarde) e apontar na rua onde morávamos, acorríamos ao seu encontro e o alcançávamos já em frente à casa de Seu João Caboclinho e Pupúia.

Ele, sorridente e sempre feliz, tomava do maior dos meninos no pescoço, escanchado em seus ombros, e os dois menores – eu um deles – cada qual em um dos braços, chegava em casa com aquela carga prazeirosamente e se agachava para que os seus filhos descessem dos seus braços e dos seus ombros. Um ritual inesquecível!

Acometido de uma patologia não dominada pela medicina da época, sofrera bastante e viera a ser internado do Hospital Santa Isabel, em Salvador. Após sucessivos exames e consumo de medicamentos ao seu alcance, fora informado de que estaria sendo liberado para ir ao encontro da sua família e lhe deram alta hospitalar, num dia de segunda-feira.

Na Bahia dos anos 50, transporte público regular era deficiente. Só encontraria transporte que o levasse até Nova Soure nos dias de terças e quintas feiras, em marinetes (ônibus) da empresa do Seo Zé Mendonça, irmão do bem-sucedido comerciante e fundador da primeira loja de supermercado na Bahia, Seo Mamede Paes Mendonça. As marinetes faziam a linha Salvador até Jeremoabo.

Como só viajaria na terça-feira, obtivera permissão da administração do hospital para que lá dormisse e que o pessoal da enfermagem o acordaria na madrugada para ir à rodoviária, embarcar com destino a sua casa.

Mala toda arrumadinha; toda a roupa pacientemente dobrada e armazenada juntamente com os exames de raio X, receitas médicas, medicamentos, etc., era só aguardar o raiar do sol da terça-feira 28 de janeiro de 1958 e arribar pro Soure.

Quando o pessoal da enfermaria, como combinado com a administração do hospital, fora lhe chamar para tomar a marinete em viagem pro Soure e rever sua mulher, filhos e amigos, ele já havia empreendido uma outra viagem; viagem sem retorno, sem necessidade de compra de passagem, sem paradas em pontos de apoio – fora chamado pelo Pai Celestial para abrilhantar a festa do Seu Reino e compor sua equipe de almas bondosas.

Seu Brito já estava morto para o mundo profano e vivo para o mundo cristão!

Minha lembrança de quando chegara a notícia, na casa de meu avô Zezinho de Romão – de muitas e muitas saudades – na sua roça situada aos fundos do Povoado do Paiaiá, é de ter avistado o Prefeito de então, mais tarde meu amigo dileto, Dr Manelito (Emmanoel Ferreira da Silva) e Abidão (Abdon Joaquim de Santana), que foram levar a fatídica notícia a nós todos, seus familiares.

Tarde de muito choro, lamentações e tristeza e nós a aguardar a chegada daquele corpo inerte; bem vestido, trajando um paletó azul marinho, gravata elegante, cabelo engumecido e bem penteado, barba bem escanhoada e feição de como a sorrir de prazer por chegar em nova morada, com novos desafios e nova missão – cuidar de todos nós, ser nosso representante lá em cima, dali em diante.

Com ele já houvera o encontro entre o seu filho varão mais velho – o que era escanchado em seus ombros, nos meios dias diários daqueles emocionantes encontros aqui na terra –  fora chamado ao seu encontro há mais de quinze anos. Nos deixou bastante saudades também; mas cuidara de resenhar sobre nossas vidas terrenas e lhe dar notícias dos seus que aqui ficaram.

Imagino que a emoção invadira demasiadamente aquelas almas, agora dedicadas a um novo ofício.

Tonho do Paiaiá – comemorando o centenário do seu pai