
Neste maio do ano corrente (2016) completaria um século de vida, se antes não tivesse sido chamado, pelo Pai Celestial, para uma nova caminhada e nova missão, Guilherme Dantas Bastos, meu saudoso pai.
Havia muitas formas de lhe nominarem: Seo Brito, Brito Guarda do Paiaiá, Brito Guarda, Britinho de Cipó.
Nós, filhos, sempre o tratamos Pai Brito. Mas, considerando o linguajar de crianças em formação e/ou alfabetização, chamávamos-lhe “Pai Bito”
Nascido nas terras do Rio Quente, município de Ribeira do Amparo, mas criado em Cipó, por ser uma cidade com maiores condições de educação na época.
Era um bom irmão e querido por todos eles, mesmo sendo um dos caçulas da minha avó Sinharinha (Ana Ferreira de Brito Bastos) e meu avô Gilberto de Almeida Bastos. Ele era o penúltimo dos filhos do casal Dantas Bastos.
Quis o destino que eu viesse a contrair bodas com uma menina, mãe dos meus lindos filhos, filha de Dona Marocas – completara 100 anos em março último passado. Dela, Dona Marocas, ouvi relatos de que quando mocinha e meu pai rapazote dançaram muito nas festas da Ribeira do Amparo, arregimentadas por seu irmão Manezinho Guarda, mais tarde, dele colega de ofício no Tesouro da Bahia. Ambos nascidos no mesmo município. Ela no arraial da Boa Hora e ele nas terras confluentes do Rio Quente, dividindo com o município de Cipó.
Homem muito querido, não só pelos seus familiares como também pela comunidade de Nova Soure, especialmente a de São José do Paiaiá, onde trabalhara, constituíra família e morara durante um bom tempo.
Tivera como profissão regular a de Guarda Fiscal do Tesouro da Bahia. Era um cobrador de impostos e trabalhara num pequeno Posto de Fiscalização que havia no Paiaiá, na década de 50 do Século XX.
Mas, era dado a transitar por algumas habilidades pessoais tais como a de seleiro e sapateiro, ambos para consumo próprio. Ele mesmo consertava os arreios dos animais da lida de vaqueiro – adorava cavalgar e ir buscar boi na mata no seu cavalo chamado Ferrinho, sempre vestido a caráter e acompanhado do seu fiel amigo escudeiro Perí, o cachorro rajado que não o abandonava por nada.
As alpercatas de dedo para seus filhos, naquele tempo feitas puramente de couro, alpercatas de tope para uso próprio, ele mesmo as produzia; cinturões, perneiras, gibão, bainhas de facão, bolsas, alforges, lóros, embornais, etc., para tudo isso não se valia de oficiais, usava seus próprios dotes neste ofício.
Ferramentas e materiais sempre bem guardadas: o seu facão corneta finamente embainhado, a faca céza bem amolada, a pedra de amolar, o cavalete de caule de mandacaru, o compasso, a régua, a sovela, a agulha de costurar, o vazador, o martelo, a bigorna; a lixa, o novelo de linha zero, o sebo de boi, a sola, o reio de couro cru, a corda de couro, tudo bem arrumadinho, num quartinho onde depositava seus arreios e onde exercia o ofício auxiliar.
Ainda lembro da minha alpercata – da lavra dele – que chamávamos “de arrasto” feita em couro cru que usei quando menino. Lembrança viva de menino.
Embora naquela época este nome não fosse designativo de profissão, fora também um paramédico. Aplicava injeção. Lembro do caso de uma garotinha que fora mordida por uma aranha caranguejeira (tarântula) e que ele era procurado para lhe aplicar injeções.
Não alisara banco de faculdade, mas era conhecedor e discorria sobre vários temas, a ponto de ter sido um formador de opinião na sociedade onde vivera.
Era um leitor contumaz. Lia muito, obras de grande valor cultural.
Lembro que, quando abrimos o seu bureau de trabalho que mantinha em nossa casa no Soure – a mesma que ainda hoje vivemos – encontramos, pelo menos, duas obras de leitura da sua predileção: uma delas era uma Revista da Seleções do Reader’s Digest (revista americana que passou a circular no Brasil nos anos 40 do século passado) e a outra um livro intitulado O Brigadeiro Eduardo Gomes, Trajetória de um Herói, de autoria do escritor Cosme Degenar Drumond,
Guardei as duas obras comigo durante muito tempo. Reputo meu despertar pela leitura por via destas duas obras. A Revista não preservei, fora logo perdida, mas li muito dos contos americanos nela contidos. O livro guardei-o por muito tempo. Até os anos 90 do século passado estava em meu poder. Emprestei-o a um amigo dele e meu e não me fora devolvido, nem eu procurei busca-lo.
Seu Brito, era muito querido do Paiaiá que o adotara. Chegara a representar a comunidade na Câmara de Vereadores de Nova Soure, eleito que fora pela União Democrática Nacional – UDN, para a legislatura 1955/1958, cessado seu mandato quando da sua morte precoce, em Janeiro do último ano da legislatura.
Nutria verdadeira amizade a muitas pessoas, a exemplo do Seo Pitisco, Seo Bizarro, Zelito de Zé Pequeno – meu padrinho batismal – Seu Quinha, Seo Zé Pequeno de Sinhá, Antonio Piaba, seus compadres João Paulo, Godinho e Armando, Seo João Pedro e o irmão Seo Ursino – com estes cinco últimos gostava de vaquejar – e muitos outros que, além de tornar muito extenso o texto se os citasse, não me vem na memória, neste momento.
Da união com aquela menina simpática, com pouco mais de 17 anos, ele 11 anos mais velho que ela, a minha mãe, Maria Ferreira Filha ou simplesmente Mariete, vieram seis filhos: quatro homens e duas mulheres. Cinco deles nasceram no Povoado de São José do Paiaiá e assim anotado nos seus respectivos registros civis de nascimento e um nascera na sede municipal.
Como tenho lembranças daquele homem cordato, solícito, brincalhão, dedicado, sentimental, amado e amante dos seus filhos. Era de uma dedicação ímpar para com seus pimpolhos e incapaz de castigar alguém. Conta minha mãe que, um belo dia ele, com correias finas de couro que as fizera para consertar a sela de montaria, batera de leve no seu filho varão mais velho em repreensão a uma desobediência deste. Ao invés do menino chorar ele é que chorara copiosamente por ter aplicado aquele castigo ao filho.
Um ritual diário, infalível por sinal, marcou em minha mente aquele homem alto, esguio, cabelos lisos e pretos, sempre bem barbeado. Gostava de usar chapéu de baeta, provavelmente o Ramenzoni XXX Cury.
Ao meio dia, todos os dias úteis, ele vinha do trabalho e nós, os três meninos mais velhos ficávamos a lhe esperar na porta da rua. Ao descer no beco da casa de Seu Carmo (Carmo Biscarde) e apontar na rua onde morávamos, acorríamos ao seu encontro e o alcançávamos já em frente à casa de Seu João Caboclinho e Pupúia.
Ele, sorridente e sempre feliz, tomava do maior dos meninos no pescoço, escanchado em seus ombros, e os dois menores – eu um deles – cada qual em um dos braços, chegava em casa com aquela carga prazeirosamente e se agachava para que os seus filhos descessem dos seus braços e dos seus ombros. Um ritual inesquecível!
Acometido de uma patologia não dominada pela medicina da época, sofrera bastante e viera a ser internado do Hospital Santa Isabel, em Salvador. Após sucessivos exames e consumo de medicamentos ao seu alcance, fora informado de que estaria sendo liberado para ir ao encontro da sua família e lhe deram alta hospitalar, num dia de segunda-feira.
Na Bahia dos anos 50, transporte público regular era deficiente. Só encontraria transporte que o levasse até Nova Soure nos dias de terças e quintas feiras, em marinetes (ônibus) da empresa do Seo Zé Mendonça, irmão do bem-sucedido comerciante e fundador da primeira loja de supermercado na Bahia, Seo Mamede Paes Mendonça. As marinetes faziam a linha Salvador até Jeremoabo.
Como só viajaria na terça-feira, obtivera permissão da administração do hospital para que lá dormisse e que o pessoal da enfermagem o acordaria na madrugada para ir à rodoviária, embarcar com destino a sua casa.
Mala toda arrumadinha; toda a roupa pacientemente dobrada e armazenada juntamente com os exames de raio X, receitas médicas, medicamentos, etc., era só aguardar o raiar do sol da terça-feira 28 de janeiro de 1958 e arribar pro Soure.
Quando o pessoal da enfermaria, como combinado com a administração do hospital, fora lhe chamar para tomar a marinete em viagem pro Soure e rever sua mulher, filhos e amigos, ele já havia empreendido uma outra viagem; viagem sem retorno, sem necessidade de compra de passagem, sem paradas em pontos de apoio – fora chamado pelo Pai Celestial para abrilhantar a festa do Seu Reino e compor sua equipe de almas bondosas.
Seu Brito já estava morto para o mundo profano e vivo para o mundo cristão!
Minha lembrança de quando chegara a notícia, na casa de meu avô Zezinho de Romão – de muitas e muitas saudades – na sua roça situada aos fundos do Povoado do Paiaiá, é de ter avistado o Prefeito de então, mais tarde meu amigo dileto, Dr Manelito (Emmanoel Ferreira da Silva) e Abidão (Abdon Joaquim de Santana), que foram levar a fatídica notícia a nós todos, seus familiares.
Tarde de muito choro, lamentações e tristeza e nós a aguardar a chegada daquele corpo inerte; bem vestido, trajando um paletó azul marinho, gravata elegante, cabelo engumecido e bem penteado, barba bem escanhoada e feição de como a sorrir de prazer por chegar em nova morada, com novos desafios e nova missão – cuidar de todos nós, ser nosso representante lá em cima, dali em diante.
Com ele já houvera o encontro entre o seu filho varão mais velho – o que era escanchado em seus ombros, nos meios dias diários daqueles emocionantes encontros aqui na terra – fora chamado ao seu encontro há mais de quinze anos. Nos deixou bastante saudades também; mas cuidara de resenhar sobre nossas vidas terrenas e lhe dar notícias dos seus que aqui ficaram.
Imagino que a emoção invadira demasiadamente aquelas almas, agora dedicadas a um novo ofício.
Tonho do Paiaiá – comemorando o centenário do seu pai