Não duvide, cabe um jegue numa sanfona.

 

UmJeguenaSanfona

Ambientado no Vilarejo do Seremão, nas plagas de Nova Soure, com relato fidedigno de Elísio de Quintino de Prima, carpina de marca maior, quietude tamanha a ponto de desconfiarmos da sua verve anedotária.

Fim de tarde, inverno primoroso, todos se dirigiam para casa após a lida diária de limpa das lavouras de feijões, milhos e abóbora.

Era uma sexta-feira do mês do junho já na rabeira do São João. O primeiro a chegar foi o Bigode – Zito de Quintino de Prima – na sua bicicleta monark, barra circular, ano 1968 e em perfeito estado de conservação.

Ponto de encontro o buteco de Zé Oreinha — este fora acometido de cegueira, por conta da diabetes, e servia seus fregueses colocando o dedo indicador, na posição vertical, dentro do copo de extrato de tomate antes de levar a pergunta: vamicê quer uma cheia ou uma meiota?

Todos clamavam por um forró – forró dos bons, como adejetivava o Zé Coco de Carlito de Jovino. “Pra que esse negócio de tá indo pra rua, pro tále de apoteose, tendo que pagar passagem a João Branco que carrega até dezesseis pessoas adultas na sua Saveiro ano 1978, pneus carecas e já sem um farol dianteiro e nenhum na traseira?!”

Saltou de lá Tonho de Paulo, “homi é mermo, né?! Pur quê nois num faz nosso forró aqui mermo, lá no salão do prédio escolar?”

Mingo de Toinzinho Bispo não se fez de rogado. “Bem meus camarada, figura pra dançar nois tem até dimais; o som a gente pode contratar o de João da Porca – ferreiro remanescente na cidade do Soure e músico multifacetado – e os infeites a gente pede a Seu Mirez – fazendeiro e comerciante, proprietário da Fazenda Grutas do Seremão e da JM Sat – por conta da propaganda da casa de comércio dele”.

João de Pedro ali do lado, pitando seu cigarro de fumo de corda, brada: cum que safona? Nem uma concertina nois tem?”

Pronto. Estava instalado o problema e era necessário ser resolvido logo; afinal o São João já tava em cima.

Nini de João de Pedro, que também vinha da limpa da lavoura falou logo: soube que lá no Povoado do Cabeleiro tão vendendo uma Oito Baixos. ###1Pe de bodeÉ Pedro de Nita e tá pedindo oitocentos e cinquenta contos; num tira um minréis, num adianta nem chorar. Quem me disse foi Vando de Carlinho de Bêia.

Zé Preto, filho de Expedito, tava assim de lado conversando com Zé de Regina e disse: tocar eu toco a noite toda, exijo respeito e num quero brigadeira de bêbo, nem dentro nem fora do salão, muito menos neguinho com faca na cintura.

Isto fez a união, imediatamente. Todos, a uma só voz, falaram afoitos e com alegria transbordando: vamos juntar e comprar a oito baixos de Pedro de Nita.

Alí chegavo o momento de ter o São João do Seremão, em primeira edição.

Zé Côco de Carlito doou duas diárias das que ia receber de Seu Mirez pela limpa do milho e capim, Zé Branco de Quintino de Prima, como tinha sobra de feijão de plantar, doou duas sacas de oitenta litros, Zezinho de Toinzinho Bispo disse: ###3porca de zezinhoeu dou uma porca que tem quase cinco arrobas. Pedrinho de Zé Bispo se dignou a fazer o palco pro sanfoneiro e os tocadores de zabumba, triângulo e pandeiro, portanto não iria doar valor pra compra da sanfona.

Ali afastado tava Expedito que acabara de apear do seu jegue, nominado brincadeira, ###2jeguevindo da roça de Dé de João de Ninguém onde trabalhara o dia inteiro, se dirigiu aos amigos e vociferou: dou este jegue, vendam e interem a sanfona.

Pronto, pronto. Feito o negócio. Zé de Regina que é de lá do Cabeleiro vai se encarregar de recolher as doações, transformar em dinheiro na segunda-feira e comprar a sanfona de Pedro de Nita, logo no outro dia.

Empreitada de sucesso. Zé de Regina, após pegar os valores em dinheiro e fazer outros valores com a venda das doações, apurou 945 contos de réis. Vamos contar direitinho e anotar, nome por nome e quanto foi que deu cada um, na caderneta de fiado de Zé Oreinha. Era o livro de tombo do Seremão, a partir dali – um livro de capa dura que Zé Ramos tinha levado pra ele Oreinha, no ano de 1967, com a finalidade de anotar as empreitas de limpeza de pasto e roçagem e destoca da Fazenda Buraco D’água, tudo sobre a direção de Seu Filhinho e rancho sob a responsabilidade de Zinho Bungunço.

Mas…., pere ai; disse Carlinho de Astério – que doara vinte litros de leite de vaca ###4vaso de leite– vai sobrar dinheiro ai depois de comprar a sanfona.

Num tem probrema, disse Tonho Surdo, o resto a gente compra a pinga pra noite de São João.

Consenso rápido. Ninguém titubeou.

Sanfona comprada, entregue a Zé Preto de Expedito, que começou a ensaiar as modinhas, principiando por Asa Branca e Apologia ao Jumento de Gonzagão, indo até a Sivirinha Xique-Xique e o Rock do Jegue de Genival Lacerda, sem esquecer o Forró Desarmado do Trio Nordestino.

Chegado o dia. Choveu de manhã à noite, chuva fina molhadeira. As mulheres infeitaram o prédio escolar com bandeirolas e cercaram a parte da entrada com palhas de licuri. João da Porca veio instalar o som e exigiu muito cuidado com seu material, pois ainda ia alugar a Teodoro de João Sabiá, pro São Pedro do Raso.

Tudo nos conforme. Chegou a hora da festa. Um sucesso! Alegria geral.

Se o cabra num fosse do Seremão, pra entrar só com convite e a triagem era feita por Toinho de Carlito de Jovino porque num bebe nem dança, mas namorador que só ele.

Uma modinha de lá, outra modinha de cá, um pedido ali, outro acolá, e Zé Preto de Expedito fagueiro na oito baixos.

Num parava, num tinha intervalo, foi assim o combinado. Se o sanfoneiro não aguentasse que pedisse arrego. E nada de Zé Preto fraquejar.

Expedito, lá pela madrugada adentro, lembrou da doação do jegue e, querendo dar uma canja, gritou a todos pulmões: pára, para sanfoneiro. Vou tocar uma música que aprendi quando tava em São Paulo. Que negócio é este de Zé Preto de num parar nem pra verter água? Qu’eu vou tocar uma, vou.

Instalada a querela, foi um alvoroço. Um dizia tu sabe lá tocar urubu de seca; outro dizia quem é doido de se desfazer destas músicas de Zé Preto pra escutar Expedito, barbeiro c’uma peste na concertina, só se for do miolo mole?!

Tentaram uma solução diplomática, sem sucesso. Zé Oreinha de lá do canto do salão, sem saber pra onde tava se dirigindo, levantou o falou: toca pra frente; puxa o fole Zé Preto, nois só sai daqui dimanhã e com você tocando.

S’aquete Expedito, vamicê num vai tocar coisa ninhuma. Depois da festa, peça emprestado a oito baixos e leve pra sua casa pra tocar pra sua famía. Nois é que num vamo estragar os uvidos com com seu lenga lenga, abardeiro do jeito que vamicê é e ainda por cima bêbo qui nem um gambá.

Expedito, já c’umas vinte meiota na cabeça, não se fez de suplicado e esbravejou: num vou tocar?!!! Toco e vai ser agora, vamicêis num s’esqueçam de qui eu tenho um jegue aí dentro da sanfona; como Zé Branco tem dois sacos de feijão, Zezinho uma porca e Zé Côco dois dias de trabalho e ainda tem os vinte litros de leite de Carlinhos de Astério.

Fez-se a confusão pelo toca num toca.

Acabou-se a festa….. todos a caminho de casa e a resenhar sobre as músicas, os passos dos dançantes, a insensatez de Expedito e o seu jegue dentro da sanfona.

Tonho do Paiaiá

Em, 11 de agosto de 2015