O rancho da decepção

Era tempos que vinham a determinar o final da década de 30 e já na beirada da de 40 do século vizinho que passou.

A sua família havia experimentado várias e diversificadas dificuldades. Desde o grande receio de dar de cara com a passagem do cangaço – capitaneado por Virgulino, o Lampião – com necessária correria para esconderijo na caatinga, até a famigerada seca de 32 que dizimara por completo o rebanho, sem falar que safra mesmo nem para a subsistência apuravam.

Como se sabe, todo rapaz, na transição de adolescente para adulto, é dado a se aventurar em mais de uma investida amorosa ou de paquera – muto embora este termo último nem se cogitava, sequer nos compêndios gramaticais, tampouco nos dicionários.

Quero aqui lhe dizer, caro leitor, sobre a bravata de um jovem bonito e vistoso, hoje homem maduro – já nonagenário, beirando o centenário – bem criado e de uma família extremamente conhecida pela retidão de caráter e dedicada a lida na roça; mais ainda por ter sido formada a partir de duas famílias muito conhecidas nos arredores dos povoados do Paiaiá até o do Cabeleiro, considerada a linha limítrofe no sentido leste oeste.

O jovem, bastante trabalhador e já desfrutando de amealhar receita própria para seu possível sustento, fielmente obediente aos seus pais, casa dos paismorava em casa destes numa fazenda próxima à Bandinha, hoje Paiaiá.

 

Dispunha de sua montaria e fazia questão de ostentá-la com seus arreios de primeira, estribos em latão brilhosos, sela de capa com enchimento de lã de safarnote, lóros, estrovos e rabicho bem untados no azeite de mamona, de dendê ou sebo de boi cuiudo.

Brida de metal – alguns achavam ser de prata, mas ele não confirmava. Não tinha a certeza, nunca foi dado a conversas que não tivesse pé nem cabeça, tampouco a confirmar mentiras, ainda que por uma boa causa, nunca – rédeas duplas, a maior fabricada com pelos de crina de cavalo e a menor encastoada com tiras de couro de carneiro curtido e de fina qualidade.

Sempre se trajava com boas calças de linho e camisas em tecido de anarruga ou cambraia, sempre em mangas longas, chapéu de baeta ramenzonni 3xmarca Ramenzonni 3X (três xis), botas enceradas e vistosas com esporas de metal compostas com rosetas afiadas e de tamanho razoável.

Era indispensável o capa colonial três coqueiros, meticulosamente dobrado, enrolado e preso na garupa da sela. Explica-se: poderia haver necessidade de viajar noite alta ou mesmo madrugada; 3 coqueiros cpoderia encontrar uma onde de frio ou mesmo uma possível chuva, sem contar que este equipamento (vestimenta) também podia ser utilizado para preparar uma improvisada cama para dormida, numa extrema necessidade.

O rapaz, não se achando pouco desejado, investira em aventura dupla: estava a cortejar moçoilas de famílias diferentes em lugares diferentes, óbvio.

Como todo “dom juan” caboclo, o rapaz se valia de peripécias para visitar alpendres diferentes sem que as cortejadas ou suas famílias viessem a saber dessa dupla aventura amorosa. Salteava momentos de visitas às suas enamoradas, ora dia por dia, ora semana por semana, mas sempre concatenando um domingo para cada amada.

Naquel’época não se visitava amadas todos os dias. Normalmente finais de semana; principalmente porque todos trabalhavam na roça em agricultura ou pecuária familiar – todos ajudavam seus pais na lida diária, seja lá em que tarefa fosse: os homens geralmente em trabalhos braçais, tangimente de bois na aragem de terraschamdor de boi, chamando juntas de bois ainda em treinamento e, quando já treinados, servindo de carreiros em carros de bois com juntas de seis, bem encangados e abrochados e com canzís bem tratados e brilhosos; as mulheres no cuidado com a casa, outros irmãos pequenos, pegando água na fonte ou no tanque, lavando roupas, pondo-as a secar e engomando-as ou como civilizadamente hoje se diz passando-as. [engomar era a denominação, dado que utilizava-se goma de tapioca (sub produto da mandioca) para deixar a roupa bem infestada, com vincos perfeitos, sem qualquer sinal de amarrotamento] e outros afazeres cabidos ao sexo feminino como reinante.

Pois bem, o amante duplo cortejava uma moça de uma família que não gozava da admiração de seus pais, em vista daquela família não lhes fazer gosto.

É como se dizia: não queriam o casamento do seu filho com a moçoila daquela família; não passara a amada pelo crivo da querência dos seus pais, embora este assunto fosse extremamente restrito ao casal e ao cortejador descendente – verdadeiro segredo familiar. No entanto, era àquela moçoila que ele mais admirava e desejava para formar uma nova família, mas não revelado aos seus pais.

A sua mãe descendera de uma família de pessoas bem-falantes. Isto é, falavam em ponta da língua, como diziam. Já o varão, de pouco estudo e, pra completar, tinha a chamada língua presa [anquiloglossia], com sérias dificuldades em pronunciar, com entonação correta, algumas palavras.

O seu pai, tinha um histórico de carrancismo pouco comum, de quem, depreende-se, o cortejador tenha herdado por consanguinidade, por óbvio.

Conta-se que, sendo admoestado por sua sogra por que não se dirigia à sua esposa chamando-a pelo nome de batismo [Joana, por exemplo] preferindo tratá-la somente de muié [mulher, esposa] – tudo por conta da limitação lingual –  se limitara a ouvir, paciente e atentamente, à admoestação da sogra, sem nada lhe responder. O episódio o fizera continuar a tratar sua esposa nominalmente por muié e assim fora até o último dia de sua vida, sem pronunciar sequer uma vez o seu nome de batismo, onde quer que fosse, em sua casa ou fora dela.

Lembro que quando perguntávamos: tio, como vai tia Joana [nome fictício]?

Respondia, sem maiores explicações: a muié, lá em casa, vai bem graças a Deus.

Nas noitadas de visitas às suas amadas, o cortejador duplo, tinha o hábito de ao chegar em casa tirar os arreios do seu ginete na porteira do quintal da casa, dava um bom banho na montaria e a soltava no pasto que melhor atendesse as necessidades da sua companhia-transportadora.

Adotou esse ritual para não acordar seus pais, não os incomodar em plena madrugada.

Seus pais, sabendo de grande zelo que o cortejador tinha para com seus sonos, costumavam deixar uma das janelas encostada, isto é, precariamente fechada, sem a passagem de ferrolho ou tramela ou trava de madeira para que lhe fosse dado acesso ao quarto de dormir.

Um belo dia – sempre há um belo dia!!! – o cortejador saíra bem mais cedo que o normal e resolvera correr o risco de visitar as duas amadas no mesmo dia. Passaria na casa de uma pela parte da tarde e na da outra pela parte da noite. Assim o fizera.

Na volta da casa da garota enamorada que visitara à noite – esta era justamente a que seus pais não aprovavam – passara na rua da Bandinha[Paiaiá], encontrara alguns parentes e amigos e tocou a pilheriar com eles contando e ouvindo causos. Ora de almas penadas, vagando em corredores[veredas] lá pelas bandas do rumo da sua moradia; ora dos famosos, folclóricos e invisíveis zumbís, ora de pega de gado nas caatingas do Icó Miúdo, Tanque do Umbuzeiro, Varzinha, etc e tal.

Justamente neste dia, por algum descuido, sua mãe passara a tramela na janela de acesso ao seu quarto de dormir. Não fora caso pensado; fora realmente uma atitude despercebida, admitindo que o galanteador já estivesse em seu leito de dormir, como fazem todos pais de famílias ao se deiteram: verificam a segurança da casa.

O deslocamento da rua da Bandinha para sua casa ocorrera sem maiores sobressaltos, embora o pangaré da montaria tenha refugado umas duas ou três vezes em vista do movimento de vai e vem, tangidas pelo vento, de umas folhas de jurubeba que tem cores diferentes: na parte de cima sempre verde escuro, na parte oposta cor acinzentada.

O amante duplo, passara de mão do seu facão corneta 18 polegadas, atiçara as esporas no cavalo medroso e dum só golpe deitara ao chão os galhos da jurubebeira. Pronto, caminho aberto sem mais empecilhos seguida a viagem buscando seus aposentos.

Cumprido o ritual de desarrochar o animal, tirar os arreios, banhar o ginete, levá-lo ao pasto de boa comida, guardar bem guardado os arreios para que não fossem atingidos por ratos, pusera o seu capa colonial embaixo do braço e incontinenti, levara a mão à janela de sempre, por onde acessava seus aposentos de dormir.

Qual não foi o desapontamento do “dom juan” caboclo que o deixou sem pernas – como se diz cá no nosso sertão – a janela estava trancada. Não havia como adentrar a casa sem que acordasse seus pais ou irmãos.

Não tivera outro pensamento: isso é porque eu venho da casa da moça que eles não aprovam; só pode ser. Para ele alguém batera com a língua nos dentes e os velhos ficaram sabendo do seu destino naquele dia.

Nada que não pudesse ser resolvido. Arrodeara a casa e se alojara na parte dos fundos numa extensão coberta da cozinha de fogão de lenha. Estendera o seu capa colonial, deitara ali mesmo e dormira até o primeiro canto do galo, seu relógio indicativo de cuidar de tirar o leite das vacas apartadas para tanto.

Pegara os vasos, que ficavam justamente na extensão onde dormira, e se dirigira ao curral. Chamara as vacas uma a uma pelos seus nomes, tirara o leite e levara para entregar à sua mãe que já estava de pé. Nada lhe dissera e nem lhe fora perguntado.

Não se fizera de rogado. Tomara do seu facão, da cavadeira, da foice bem amolada e se dirigira à caatinga que circundava o quintal da casa – a pouco mais de 100 metros – antes mesmo de tomar o café da manhã, como costumeiro.

Escolhera alguns caules de árvores, do seu conhecimento boas para aquele intento, cortara algumas palhas de licurizeiro, fizera destas algumas cordas para as amarras do esqueleto que levantara, cobrira com as outras palhas taipa melhore fizera um rancho [moradia precária] onde passara a dormir daquele dia em diante e durante mais 6 anos seguidos.

É necessário que se diga: o relacionamento do “dom juan” caboclo com seus pais e demais familiares em nada mudara. Circulava livremente pela casa matriz, fazia refeições, etc e tal., mas deitar-se a dormir ou descansar somente no seu rancho levantado na caatinga.

A decepção daquela noite-madrugada lhe dera um rancho na caatinga.

Tonho do Paiaiá

Relatando um causo que ouvira, na madrugada do primeiro dia do ano de 2019, de não menos que a filha do “dom juan” caboclo.

Salvador, 5 de janeiro de 2019