A chave do Engenho – saga e autocontrole de um sertanejo

A chave do Engenho – saga e autocontrole de um sertanejo

A famosa e temida “Seca de 32”[século passado] fizera um grande estrago no sertão. Iniciada, em verdade, no ano de 26, experimentara um pequeno intervalo no ano de 29, dizem os escritos.
Esta fora bem diferentemente daquel’outras ocorridas nos períodos imperial (1877 – 1879) e republicano (1915) da vida política brasileira.
Na primeira, embora no período imperial, houvera maior sensibilidade dos governantes de antanho a ponto de incentivar o êxodo de nordestinos para as regiões amazônica e sul do Brasil. Há estimativas de que morreram em torno de meio milhão de pessoas, embora haja contestações estimando alcançar a casa de dois milhões de mortos.
Em todas elas, sob os olhos dos governos imperial e republicano, optou-se por conter grande leva de pessoas, em abrigos, vigiados por guardas, tolhidos do salutar direito de ir e vir. Uma lástima!Seca 3
Esses abrigos foram classificados como “verdadeiros campos de concentração”. Teria o führer alemão se inspirado nos ‘abrigos’ nordestinos para utilizar campos de concentração na Segunda Grande Guerra? vade retro!
Famílias dizimadas, outras partidas ao meio, outras ficaram bastante diminutas, quase desaparecidas. Alguns desses episódios ligados à morte, outros à partida em busca de refrigério, outras por naturalidade da expectativa de vida presente à época.SEca mulheres
O velho Graciliano, em Vidas Secas, nos dissera muito da saga vivida pelos sertanejos. Então desnecessário trazer a lume neste artigo, dado não ser este o seu propósito.

Volto ao propósito.
Uma família, duma certa povoação sertaneja, tivera de mudar-se para outra que, na visão do seu varão, poderia lhe trazer a redenção. Não se sabe lastreado em quê; intuição pura e simples.
Comparando mal, sem nenhum desmerecimento, o faro do homem trabalhador e destemido, antes submerso nas cinzas sobrantes da caatinga que o sol torrara, aflorara e determinara um novo rumo na sua vida e da sua família.
Havia decidido. Dali mais alguns dias deixaria aquela povoação, onde nascera e até ali vivera, em direção a outra qualquer que lhe garantisse prosseguir com o mandamento divino “crescei e multiplicai”. Assim o fizera.
Escolhera povoação, mais próspera que a natal, onde pra lá já havia se mudado uma leva de pessoas do seu relacionamento amigável e/ou familiar.
Montara moradia. Trabalhara incessantemente, recebendo adjutório advindo daqueles conterrâneos já estabelecidos na localidade, construíra sua morada, fizera seu roçado, sua malhada para o plantio do feijão e mandioca – seu sustento e de sua família.
Tempos difíceis vieram. Viajara a São Paulo em busca de trabalho. Trabalhara e amealhara capital suficiente para enviar todos os meses à sua família – via Vale Postal dos Correios (quanto fora útil e respeitada a Agência dos Correios daquela época em que não se ouvia falar em agência de Bancos nos sertões!) – e ainda trouxera a maior parte para sua mantença e dos seus, além de adquirir novas terras para trabalhar.
Quando fora visitar a malhada que deixara ao viajar pra São Paulo, encontrara lá outro ser vivente instalado com família e tudo, com casa de taipa e tudo mais.
Dissera a si mesmo: se esta criatura teve coragem de invadir a propriedade dos outros, botar sua família dentro, com ou sem razão, tem coragem também de até me matar se for reclamar sua saída. Deixa ele aí; ele tá precisado mais do que eu. Deus há de me dar outra!
E Deus lhe dera! Com o dinheiro conquistado pelo trabalho em São Paulo adquirira outras terras, possuindo-as até a sua morte.
A família crescia, filhos e filhas nasciam e eram criados com muito amor e responsabilidade. Todos ainda pequenos; viera mais um rebento, sob a graça de Deus.
Como nenhum dos filhos pudesse ajudar a própria mãe no pós-parto, era necessário que o sertanejo arranjasse uma pessoa para cuidar da parida até cumprir o resguardo.
Ele, trabalhador como o era, ficava o dia inteiro fora de casa, saindo ao raiar do sol e retornando quando este se punha.
Por oferta da família de trabalhadores em suas terras, trouxera para ajudar sua esposa uma meninota na faixa dos seus 16 a 17 anos – já madura para a época – embora não muito bem aquinhoada de trajes, por conta da situação financeira de seus pais, mostrava-se bem limpinha e prendada em afazeres do lar, além de uma beleza invejável, com sua tez morena, cabelos longos e lisos, digna de admiração de todos.
Tudo corria nos conformes de uma família normal. A parida cumprindo seu resguardo, o varão cumprindo sua lida diária na roça, os meninos sendo assistidos pela morena donzela a cuidar da casa e dos afazeres que lhe indicavam serem adotados no dia a dia.
Mas, nem tudo é calmaria. Meninas nessa idade, contam com o despertar de desejos, com a libido à flor da pele. Não fora diferente com aquela caboclinha: os desejos efervesciam, a libido lhe empurrava mais ainda à satisfação daqueles pecaminosos desejos.
Não deu outra.
Certa tarde, após o almoço, as crianças na escola e a parida no seu aposento – não podia de lá sair antes de completar o prazo do resguardo; eram absolutamente rígidos os resguardos de parto naqueles tempos – chegara em casa o varão, viera mais cedo para cuidar de algum assunto na urbi, talvez registrar o assentamento do nascimento do mais novo rebento.
A caboclinha lhe pusera o almoço e não se afastara da sala. Rodopiava pra lá, rodopiava pra cá, perguntava se o varão desejava água, um doce de umbu, um café, etc., etc., etc., tudo na normalidade, até ali. Tirara a mesa, lavara a louça e tudo mais. Arrumara a cristaleira e se recolhera aos seus aposentos nos fundos da casa, um cômodo bem arrumado, limpinho e cheiroso.
É preciso cuidar e respeitar a filha dos outros. Ela tem o mesmo direito de se alojar bem em minha casa, como tem a minha família, dizia o varão, respeitador, respeitado e consciente, muito embora cultivasse um carrancismo de raiz.
Viera o inesperado. O varão fora até a cozinha pra beber um gole d’água fria, tirada de caneca diretamente do pote.
A caboclinha, pressentindo o movimento e sabedora de quem se tratava, chamara o varão ao cômodo onde estava: Seu fulano, faz favor, venha cá.
Na boa fé e na consciência do respeito de um dono da casa, atendera ao chamado da moçoila.
Chegando lá, qual não fora o seu espanto: a caboclinha pelada, peladinha; nua, nuinha como nascera, insinuando um convite ao prazer carnal; afinal ele estava choco, no estaleiro, há muitos dias, por conta do resguardo da sua companheira, havia de dobrar-se àquela tentação dos diabos.
O varão olhara aquela cena admirável, porém, ao seu ver, desrespeitosa e altamente perigosa.
Não dirigira carões ou outras reprimendas mais ácidas àquela menina em estado fogoso, com a libido altamente aguçado e tangendo-a ao caminho do prazer carnal, ainda desconhecido e não experimentado.
Simplesmente lhe dissera: menina, criatura de Deus, tu veste logo essa tua roupa; isso aí é a chave do Engenho da Conceição!
No mesmo instante, e do alto do carrancismo que lhe caracterizava, tomara da sua montaria, desistira do afazer a que se propusera naquela tarde. Determinara que a caboclinha arrumasse sua trouxa, a pôs na garupa do seu ginete e partira em retirada rumo ao local onde moravam os pais da assanhadinha adolescente.
Lá chegando, entregara a espevitada aos seus pais, sem que tenha tecido uma palavra sequer sobre o acontecido naquele cômodo da sua casa; não cabia bem, seria uma grande decepção daquele casal humilde e trabalhador. Apenas dissera que ela vivia pelos cantos da casa, pedindo toda hora pra ir embora e decidira ir leva-la naquela tarde. Agradecera os préstimos e retornara ao seu lar.
Salvara-se aquele sertanejo de uma descompostura, da perda de credibilidade de que gozava na sociedade, da ruína de seu casamento, da perda de uma longa e sincera amizade com seus trabalhadores, e, mais ainda, de responder a um processo penal.
*Engenho da Conceição era, inicialmente, a denominação popular que se dava ao presídio da Capital, posteriormente, já em outro edificação, passou a ser apelidada de Pedra Preta.
Tonho do Paiaiá
Salvador(BA), 19 de maio de 2019