
Uma experiência não programada. Em viagem ao litoral norte da Bahia; fui a uma casa comercial acompanhando meu cunhado Zé Hilto de Zecaria. Ele, fazendo compras para mantença da casa de praia; eu passeando e dando um adjutório no transporte dos produtos até o bagageiro do seu carro.
Escolhidos os produtos, levados ao balcão, fomos atendidos por dois caixeiros da venda – um deles era uma moiçola distinta e de beleza dentro dos padrões da morena baiana e que foi escolhida pelo comprador para o atendimento final. Ela nos atendeu com muita simpatia e se esmerou em anotar, item a item; valor a valor, num papel almaço alí em frente a nós todos.
De logo pensei: esta menina vai somar tudo na ponta do lápis. Afinal as anotações estavam dispostas uma a uma, em cada linha. Do lado esquerdo anotava o nome do produto e do lado direito o valor da aquisição. Ela ainda passou um traço – linha reta – no final e embaixo da lista do todo anotado, assim que o freguês terminou de escolher os produtos que necessitava comprar.
É certo que a minha curiosidade aumentou quando não vislumbrei qualquer equipamento que se prestasse a efetuar a soma. Óbvio que havia esquecido de que os aparelhos celulares de hoje estão perfeitamente aptos a tal servidão.
Mas, não foi o celular que ajudara a moçoila nesta empreitada. Ela virou-se, alcançou uma máquina de calcular daquelas vendidas facilmente nas chamadas “feiraguay”, com dígitos vistosos pelo tamanho do visor e pôs-se atentamente ao somatório.
Meu espanto, silencioso óbvio: ôxi, esta menina tá somando é na máquina é ?!!!! e pra que serviu o traço embaixo da relação de compras e dos seus valores?!
De cá, eu, silenciosamente, fazia a apuração da soma e terminara antes mesmo da operação encetada pela moçoila balconista. Ao término da digitação ela tomara do lápis para anotar o total encontrado.
Deselegância à parte, perguntei-lhe: deu quinhentos e quarenta e oito foi? E ela, com espanto na face respondera: deu isto mesmo; e o senhor somou sem lápis e sem papel?!
Não foi difícil lembrar, imediatamente, do meu começo de escola primária lá na minha Nova Soure. Vieram-me velozmente lembranças de duas professoras, ícones em ensinar e firmes em disciplinar: uma leiga e que nos ensinava de modo particular Dona Maria Conceição; outra formada e servidora pública no Grupo Escolar Dom Pedro I, Maria do Carmo Fonseca Biscarde.
Com Dona Maria Conceição aprendi as primeiras letras do ABC e do Bê a Bá até a Cartilha – era assim a cronologia curricular do meu tempo. Mas, não bastava sermos alfabetizados com conhecimentos da língua pátria, teríamos de ser “tabuatizados”, isto é, aprender a Tabuada era mais que necessário, era essencial para enfrentamento da vida prática.
Dona Maria Conceição não aliviava nas sabatinas da tabuada. Errou na resposta, a palmatória dava a nota: dois bolos, quatro bolos, seis bolos; dependia da série e idade do perguntado. Mas, lembro bem, aprendi as quatro operações, contas de dividir e de multiplicar de 2 e de 3 letras (casas numéricas).
O que não esqueço é da indefectível “prova dos nove” ou “noves fora”. ”Acabou de fazer a conta menino? Então tire a prova dos nove. Hai daquele que não a aplicasse e não chegasse ao resultado previsto na resposta da questão, a palmatória lhe esperava.
Não se assustem, o ensino nas décadas de 50/60 do século passado, permitia esta espécie de cobrança, mental e física, por parte dos professores.
De Dona Maria do Carmo as lembranças do jeito severo e ao mesmo tempo dócil de cobrar dos seus alunos comportamento correto em sala de aula, dedicação aos estudos – leitura em voz alta, ditado, “venha ao quadro”, sabatinas, revistas (verificação de como as mães estavam cuidando e mandando seus filhos à escola: unhas, ouvidos, nariz, cabeça, etc.) – foi uma mestra no ensinar e no disciplinar a classe. Também não aliviava na palmatória e na régua.
Um dos nossos colegas e seu aluno, Wilson de Mãe Auta, sempre presenteava a professora com réguas bem envernizadas e fortes, que as fazia na marcenaria de Zito da Bimbarra. Só que essas réguas eram sempre quebradas nele mesmo, dada sua traquinagem, quer dentro quer fora da sala de aula. Quanta saudade, não das quebras de réguas, mas das brincadeiras daquele garoto criado com vó; doce lembrança deste colega, hoje morador da Cidade Maravilhosa desde meados dos anos 60. Depois disso só o vi uma vez, em 1981, quando fui visitar sua mãe, Marilda Santana Martins – Morena de Mãe Auta.
Deixemos minhas recordações de lado, embora pertinentes a esta escrita, e voltemos ao episódio somatório do litoral norte da Bahia.
Meio que querendo ser professor, ou intruso mesmo, perguntei à moçoila: então a senhorinha não faz a verificação, tirando a prova do “noves fora”, pra ver se a conta tá certa?
E ela, sorridente, porém com ar de espanto respondera indagando: “ ..o que é isto…. noves fora!!!!”
É a prova dos nove, dona menina, retruquei.
E toquei a efetuar a verificação, começando pela coluna dos valores dos produtos: um e dois, três e três, seis e quatro: dez, noves fora: um e oito: nove nada. Sete e cinco: doze, noves fora três e quatro, sete e dois: nove nada. Cinco e cinco: dez, noves fora: um e um dois e um três e dois cinco e oito: treze, noves fora quatro e oito: doze, noves fora três e cinco oito e sete: quinze, noves fora seis e dois oito e dois: dez, noves fora um e sete: oito. Passei ao somatório da conta e continuei: Cinco e quatro: nove nada. Oito.
Pronto, estava mostrado que o resultado da soma feita na máquina “feiragay” tava correta, não havia o que reclamar.
Afinal, “noves fora” tanto na soma dos algarismos das parcelas como na soma dos algarismos do resultado do somatório, obteve-se o algarismo oito.
É assim que se afere uma conta, pelo método do “noves fora”. Se o algarismo final da soma dos algarismos da coluna (valor de cada produto) coincidir com a soma dos algarismos da linha (resultado da soma), a conta está efetivamente correta.
O espanto da balconista se avolumava a cada soar, nos seus ouvidos inocentes, os “noves fora”. E, como que me repreendendo, disse: “…. eu não sou muito boa em matemática não, moço….. preciso estudar mais…”
Zé de Zecaria, também sob espanto – não pelo soar dos noves fora, mas pela ousadia daquele professor fora de hora e local próprios – e esbanjando um sorriso quase sem graça, como que a dizer: ligue não dona menina, este cabra é doido mesmo.
Percebendo o espanto da moçoila, busquei resgatar a elegância do respeito e parei de vez, sem perder a oportunidade de uma nova pergunta: a senhorinha estudou até que série? Vejam quanta intromissão na vida alheia; imperdoável nos tempos atuais, não acham?!
E ela, educadamente, confessou: “….tenho o segundo grau completo, mas vou ter que estudar mais…..; …….. é que tenho de trabalhar o dia inteiro e não me sobra tempo para isto….”
Vejam, vejam só! Tem o segundo grau completo. Deve saber resolver equações do segundo grau, radiciação, potenciação, trigonometria, razão e proporção; regra de três, regra de sociedade, limites e derivadas e tantos outros assuntos da matemática, não duvidem.
Mas, a prova dos noves ou “noves fora” lhe soou como insulto aos ouvidos, ao seu dia a dia de caixeira (balconista); afinal não precisa desse tal “noves fora” pra nada. Tem ao seu alcance uma calculadora “feiraguay” ou não, um celular ou não, pra quê recorrer a métodos tão arcaicos de verificação na feitura de contas?!!!!
E, por aí, anda a preparação do aluno para ENEM, vestibulares, concursos, etc., etc., não se tem dúvidas.
E, para a vida prática, para situações de falta de equipamentos com a finalidade de realizar operações aritméticas das mais simples e corriqueiras, como anda?
Recorra-se à prova dos nove, ao “noves fora”; é o caminho!
Tonho do Paiaiá
Em Stella Maris, bairro de Salvador, 22 de novembro 2015