O “vira-lata cultural” de Geraldo Prado

Vira Lata Cultural -pq

Dizem que quanto mais ficamos velhos, menos dormimos. S’é mentira ou s’é verdade não sei!

Sei mesmo que, por vezes, me pego acordado na madrugada e passo a ler tudo que me seja possível.

Hoje nesta madrugada, a dois dias do final de novembro de 2015, leio uma escrita magistral, do não menos magistral Professor Geraldo Prado – do Paiaiá como eu – homem que tem dignificado aquele torrão e o levado ao alcance do mundo literário, televisivo e outras mídias.

Geraldo, alegando sua insônia, tem premiado a nós todos com textos primorosos; fruto do que usa para afasta-la, no cotidiano.

O professor, na sua narrativa, optara em discorrer sobre a sua meninice no sertão, com o cuidado de alertar que o texto e o episódio interagem com a Biblioteca do Paiaiá, para nos falar do seu velho cão – de nome Cação – que não pudera levar consigo, na viagem que empreendera em busca do sucesso, para a Cidade de São Paulo na década de 1960.

Numa narrativa leve e frugal, o vira-lata Cação em busca de sua Baleia determinara o título do seu conto como “Meu primeiro triste conto de saudade do sertão”.

Quis mesmo, de imediato, fazer um comentário na rede social onde fora publicada sua narrativa. Mas, me contive. Arrisco-me, então, em escrever um texto em solidariedade ao insone Geraldo, para lhe dar conta do que acontecera com os piscis (Carolus Linnaeus, 1707 – 1778, em português Carlos Lineu) e os cetáceos caninos do seu conto.

Traço uma paródia – sem objetivo sarcástico, obviamente – narrando ida ao seu encontro e consequente retorno do pisci-canino Cação, na companhia da namorada, cetácea-canina Baleia.

Geraldo estava cônscio de que Cação não mais voltaria a vê-lo; afinal São Paulo é um mundão em tamanho além da distância, digamos, inalcançável aos dois caninos.

Mas não foi bem isso que ocorreu. Cação tomou de sua Baleia e saiu, sem lenço e sem documento – talvez tal atitude tenha inspirado o Caetano a compor a célebre música – em busca do encontro com Geraldo, na cidade que não dorme.

Desnecessário dizer do insucesso do casal canino aventureiro. Desta forma, não havia outro caminho senão o retorno ao velho, amado e sofrido Paiaiá, e o fizeram sob intempéries, fome, sede, maus-tratos, enxotamentos, xingamentos, etc.

Ponto de chegada na cidade e de largada em retorno ao sertão, o Parque Novo Mundo conhecido local onde ficavam estacionados os caminhões do norte; fora escolhido por conta do anseio de encontrar alguém que conhecesse o Geraldo e lhes desse notícias ou os levassem até ele.

Tal como os bandeirantes, escolheram seguir pela margem do rio Tietê e se foram. Tomaram o rumo do Paraíba do Sul com direção à sua foz. Tinham certeza de que alcançavam o estado do Rio de Janeiro.

A esta altura já não estava somente o casal. Mas, nada de prole. Haviam despertado compaixão e interesse em outros piscis ao longo da caminhada-nado.

Ainda em São Paulo alcançaram o rio Ribeira do Iguape e foram seguidos pelo dourado; logo próximo à foz do Paraíba do Sul foram acompanhados pelo robalo. Nas Minas Gerais tomaram a margem do rio Jequitinhonha, mas sempre procurando o rumo que os levasse ao sertão da Bahia. Nem cogitaram passar pelo Rio Doce. Souberam que seu nome-paladar mudara por conta de um acontecimento-crime perpetrado por uma mineradora cruel e de administração insensata. O rio estava amargo e morto; morto como o Fogo, de José Lins do Rêgo.

Seguiram adiante, rumo ao seu (deles) sertão. Num breve tempo, se viram na Serra da Canastra e beberam água límpida na nascente do Velho Chico. Descendo o rio São Francisco, já contavam com a companhia do surubim.

Preferiram tomar o rumo do Rio Itapicuru – no período colonial denominado Rio São Jerônimo – e foram parar nas bandas do Piemonte da Chapada Dimantina, município de Jacobina, onde está sua nascente. Neste rio ganharam a companhia de xiras, mandís e piáus e rumaram em procura de sua foz. Forçosamente haveriam de passar nas margens onde são banhados os municípios vizinhos Olindina e Nova Soure, o destino da caravana.

Um dilema: teriam que chegar ao Paiaiá e por lá não passa nenhum rio. O local mais próximo do rio Itapicuru, Carrapatinho (divisa entre Olindina e Nova Soure), fica a 8 km do Brejo – fazenda nos arredores do Paiaiá – ponto de partida com destino a São Paulo e local da moradia originária do Geraldo e seus familiares.

Buscaram orientações e passaram a caminhar-nadar, daí em diante em riachos, alguns perenes outros não.

Descambaram para o riacho da Várzea entre os municípios de Olindina e Nova Soure e foram se parar no açude da Varzinha; alí passaram a ter a companhia de um caboge (Callichthys callichtys).

Rumaram para o açude do Seremão e ganharam a simpatia de duas traíras, uma delas tão velha que já usava óculos. Pegaram o riacho paiaiá para chegarem ao ponto de destino, o Brejo.

A matilha-cardume encantava a todos pela sua organização e solidariedade.

Dois bem-te-vis gamela empreendiam voos rasantes, a sinalizar a caminhada-nado, como se fora “batedores” de veículos de grandes envergaduras transportando equipamentos para montagem de usina de energia eólica.

Os quero-queros (tem-tem ou espanta boiada), com seus silvos breves e longos, organizavam a parada do trânsito nos locais de mudança de rumo, como se fossem verdadeiros guardas de trânsito.

Uma revoada de anús, brancos e pretos, tomava a dianteira como anunciadora do comboio canino-pisci.

Chegada triunfante à Biblioteca do Paiaíá. Uma verdadeira apoteose; coisa jamais vista nessa terra.

Os pássaros a chilrearem sem cansar; os cães a latirem em dobrados, tal como os dos sinos da igreja; o vento chamando a chuva p’ra dançar, causando ciúmes à montanha. E o povo, efusivamente, aplaudia de pé.

Cação, todo prosa e de braços dados com sua Baleia, tomava a dianteira da caminhada-nado. Os piscis sempre borrifados pelo cetáceo companheira do chefe da matilha-cardume, para aplacar o calor e lhes garantir a sobrevivência, até que fossem recebidos por Vadinho de Nelito de Dolí e Francisco de Caçula, com o objetivo de fazerem rancho na Biblioteca do Paiaiá, em descanso, até chegar o momento da ida ao Brejo em busca do Geraldo.

Chegaram sãos e salvos, alguns debilitados, certo, mas sem maiores intercorrências.

Só uma decepção para o casal canino-pisci, não encontraram o Geraldo, mais uma vez.

Ele estava em viagem de lazer-estudo-trabalho à Escandinávia e Países Baixos, garimpando recursos para implementar novas frentes de ensinamentos aos leitores, frequentadores e admiradores da Biblioteca do Paiaiá e da população em geral.

Fala-se que Cação e Baleia, embora predadores naturais, se recusaram a caçar preás e outros pequenos animais para o sustento deles; fala-se que o cardume e a revoada que os seguiram e ovacionaram vão ficar para o evento do início do ano de 2016 que tem como tema central a proteção aos animais.

O Natal na Biblioteca do Paiaiá será uma festa diferente e alegrada pelos protagonistas desta inesquecível viagem.

Tonho do Paiaiá

Em, 28 de novembro de 2015

Seo Vereador, vosmecê tem o protocolo? Pergunta o eleitor

Prefeitura do Soure

Era o ano de 1954. Haveria Eleições Municipais livres no Brasil, já democratizado e após a morte do seu Presidente, Getúlio Dornelles Vargas, que embora tenha sido ditador no período de 1930/1945, se elegera democraticamente em 1950. O município de Nova Soure, na Bahia, elegera, em primeiro mandato, um jovem Cirurgião Dentista, Dr Emmanoel Ferreira da Silva –  o caçula do clã dos Ferreira – para dirigir os seus destinos na legislatura 1955/1959 – naquele tempo a transmissão do cargo ocorria no mês de fevereiro.

[Retificando: a transmissão do cargo ocorrera em 07/04/1955, por força da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral nº 4.648, de 27 de janeiro de 1954]

Como qualquer município de pequeno porte, tal qual o nosso, os Vereadores seriam eleitos apenas na condição, digamos assim, de título honorífico, embora investidos no múnus de legislar e no ônus de servir. Não havia remuneração para o exercício do mandato, a eles confiado pela sociedade.

Dr Manelito, assim amistosa e carinhosamente tratado pelos seus munícipes, era irmão do primeiro prefeito eleito democraticamente em Nova Soure, José Ferreira da Silva – Seo Juca ou simplesmente Seo Juquinha. Também era irmão do ex-prefeito, por duas legislaturas (1938 a 1945 e 1955 a 1959), de um dos mais ricos municípios da Bahia – a Itabuna do cacau – o primogênito do clã ferreirense, engenheiro civil, formado na Escola Politécnica da Bahia, Francisco Ferreira da Silva – Ferreirão, como assim era conhecido, considerado um dos melhores prefeitos da história daquele município.

Nessa legislatura, fora eleita Vereadora Dona Morena, a Professora Maria de Lourdes Ferreira da Silva, tendo sido escolhida para presidir a Câmara dos Edis.

Vê-se, assim, que a Família Ferreira tinha, além da vocação pelas prendas educacionais, a vocação política – era a única família na região a contar com quatro filhas diplomadas Professoras, pelo Instituto Normal da Bahia.

Dr Manelito, iniciante em administração pública, sucedendo ao prefeito Ramiro Vieira, homem nascido no Junco (Maiada da Pedra), hoje Sátiro Dias, que fizera uma administração elogiável e em continuação ao que iniciara Seo Juquinha, cuidara de organizar os serviços públicos do nosso município, bem ao seu jeito de agir – com parcimônia, com atenção e com educação ímpar, aliás marcante na sua alma de homem e amigo.

Consta que entre os Edís eleitos naquela legislatura, estava um senhor de moral ilibadíssima, cordato, homem próspero – de poucas letras, mas de uma inteligência invejável – que representava um dos Povoados existentes naquela época. Além de ser um fiel escudeiro e defensor no Prefeito eleito, o assessorava nas questões do trato com a terra, na lida com o rebanho e na manutenção dos serviços da fazenda do alcaide.

Para os moradores daquele povoado e da região circunvizinha foi uma vitória dobrada. Elegera o candidato a Prefeito e, de quebra, um seu representante na Câmara Municipal, um Vereador “da gema” como se diz. E não foi um mero vereador; foi um vereador com fácil acesso ao prefeito e com raízes muito fortes de trabalho e amizade – foi, como se aplica a esses casos, “a sopa no mel”!

Administração iniciada, o prefeito Manelito não descansava. Projetara e começara a executar a reurbanização da Praça Nossa Senhora da Conceição – a principal da cidade – e, delegara aos vereadores dos povoados que lhe trouxessem as reinvindicações das suas comunidades, ouvidos os habitantes evidente e independentemente de preferência partidária desses.

Em verdade, esses vereadores eram, digamos assim, os subprefeitos, embora não formalmente nomeados, nem reconhecidos como tal.

Mas, pouco importava, se as distâncias entre as localidades e a sede; as dificuldades de transportes e as inoportunidades de falarem com o prefeito, fizessem com que os munícipes dessas localidades sempre se valessem dos seus vereadores; seus representantes, para as reivindicações do necessário. O importante era que estas reivindicações chegassem ao gabinete do alcaide. Era este o propósito.

As reivindicações não cessavam. Ora era a limpeza de um corredor – estrada de boiada, de carro de boi, carroçal; ora era a limpeza de um tanque; ora era a preparação para a festa do padroeiro ou padroeira da localidade e, outras tantas reivindicações.

Os interessados, sempre nos dias de feira livre nessas localidades, procuravam o vereador para apontar o que estava necessitando nos arredores da sua morada ou da sua roça.

O vereador selecionava, ao seu entender, o que era possível cobrar do prefeito. Não queria incomodá-lo com pequenos pedidos, alguns, para ele vereador, descabidos. Dessa forma, era de se prever que as nem todas as reivindicações chegassem ao conhecimento do administrador municipal.

E lá se vinham os comunicados, pedidos, reivindicações:

  1. “seo vereador, o corredor que vai pros lado da Ribanceira de Baixo tá quase fechando. É preciso mandar roçar” – resposta imediata: “já requeri ao prefeito, meu fio”
  2. “seo vereador, o tanque da Pimenteira Salgada tá que é lama só; precisa de limpar antes que a chuva chegue” – mas uma resposta pronta: “já requeri ao prefeito, meu fio”
  3. “seo vereador, aqui tá precisando de um curral de matança (abatedouro de animais) por que a feira tá crescendo e vai ter que matar mais gado” – mas uma resposta pronta: “já requeri ao prefeito, meu fio”

Os pedidos se avolumavam. O prefeito não tinha conhecimento deles, óbvio. O vereador não queria “incomodar com coisa pouca”. As respostas, sempre prontas e sempre as mesmas, pareciam já não mais convencerem aos interessados.

Mas o vereador era uma pessoa tida na mais alta conta; um homem digno e respeitado; uma referência entre os moradores daquela região. Quem se arvoraria em questioná-lo em desacordo? Ninguém, óbvio.

Mas, nunca se sabe. Aqui acolá era esperado o momento de se saber qual a decisão do prefeito em relação aos pleitos dos eleitores. E não estava longe de acontecer.

No próximo mês, estaria sendo realizada a romaria religiosa no povoado e o senhor prefeito deveria estar presente. Aí era só alguém se aproximar e saber do prefeito quando seria limpado o tanque da Pimenteira Salgada ou roçado o corredor da Ribanceira de Baixo.

Lá um belo dia, no barracão onde se realizava a feira livre, estavam algumas pessoas numa conversa bem amistosa e alegre; afinal as risadas dobravam. Entre essas pessoas o vereador cumprimentando um e outro; quem chegava; quem saia.

Zeca Bico Largo, um dos reivindicantes dos serviços apontados, tinha acabado de chegar para fazer a feira. Arriou o boca-pio na banca de carne de João Quarto Doce, se integrou à roda de conversa e, lá pelas tantas, se dirigindo ao vereador lançou a pergunta: “seu vereador, o prefeito já mandou limpar o corredor da Ribanceira de Baixo? Daqui três semanas tem a romaria do padre e minha famía qué vim pra cá. Do jeito que tá o carro de boi num passa”.

A clássica e conhecida resposta pronta, “já requeri ao prefeito, meu fio” soou em alto e bom som.

Assim de lado, como não quer nada, escutando toda a prosa e atento ao que ali se conversava, um rapazinho franzino, estudante da escola rural, se vira para o vereador e lança a pergunta: “seo vereador, vosmecê tem o protocolo deste pedido?. Porque todo domingo eu fico por aqui e sempre escuto o senhor dizendo aos seus eleitores ‘já requeri ao prefeito, meu fio’; no outro domingo, vem a mesma queixa, a mesma resposta e, ao que parece, nenhum serviço foi feito ainda”.

Todos ficaram assombrados. Quem este rapazinho atrevido que faz uma pergunta dessas ao vereador? Seria um “pau mandado” da oposição? Será que é de fora – num é daqui e veio atazanar o juízo do vereador? Silêncio total. Fôlegos presos à espera de uma reação esbravejante do perguntado. Assim se portaram os presentes à roda de conversa.

Mas, o vereador, sério e respeitado como sempre o foi, não perdeu sua condição de formador de opinião e elo de ligação entre a comunidade e o prefeito. Não podia revelar a real situação do encaminhamento das reinvindicações – isto comprometeria seriamente sua carreira política e a do prefeito, seu aliado.

Com parcimônia e em tom apaziguador, passara a mão na cabeça do jovem perguntante e lhe respondera: “é o máli meu fio, é o máli. Foi tudo bocoriamente”.

Tonho do Paiaiá – entre o Dia de São José e o início do outono de 2016.

Causos da vida política em um povoado – não se faz referências nominais às localidades e a algumas pessoas, em respeito a cada uma delas e suas famílias, também para não dar margem a pretensas identificações.

https://tonhodopaiaia.wordpress.com/seo-vereador-vosmece-tem-o-protocolo-pergunta-o-eleitor

De mestres jornalistas, de aulas públicas, de professores abnegados

Sou leitor e assinante do diário Jornal A Tarde, há mais de 40 anos.

Como leitor, com certeza, quase cinquent’anos, visto que fui a ele (jornal) apresentado em 1967, na Ilhéus de São Jorge – Capital sulista da Bahia, refúgio boêmio de Jorge Amado – quando excursionávamos com a Turma de Concluintes da Quarta Série Ginasial, do laureado Ginásio Professora Maria Ferreira da Silva, da minha outrora Natuba, Nova Soure. Como assinante, pouco mais de duas décadas.

Aqui no Soure, tínhamos acesso a poucas obras literárias. Predominavam  clássicos, como as obras de Machado de Assis, José de Alencar; às vezes do matemático-pedagogo Malba Tahan, etc., alguns gibis, além de bolsilivros de faroeste, de Marcial Lafuente Stefania. 

Os clássicos por empréstimo de professores ou de pessoas de famílias ricas da cidade – afinal poucos tínhamos condições de comprar livros, principalmente se não fossem os didáticos adotados nas escolas – os gibis e bolsilivros. passados de mão em mão entre garotos, principiando, obviamente, por alguns dos mais abastados.

Sem nenhum ranço machista, desnecessário dizer que, na ala feminina pontuava a leitura de revistas novelescas e noticiosas sobre vidas e amores de cantores e astros da época: Capricho, Sétimo Céu, Ilusão, InTerValo, Melodias, etc.

A leitura me alcançou logo nos primeiros anos de vida – lá pelos cinco ou seis anos de idade – Eduardo Limanão só na escola regular, como por meio de duas obras que encontrei numa das gavetas do bureau que pertenceu ao meu pai, que falecido em 1958 e ainda bem jovem.

Uma delas, o livro  O Brigadeiro Eduardo Gomes, Trajetória de um Herói, de Cosme Degenar Drumond e a outra uma edição da revista norte americana, circulando no Brasil desde a década de 1940, Seleções do Reader’s Digest.

Outras leituras ma alcançaram na obrigação escolar: Eduardo Lima (Tarefa Escolar)inevitáveis, formadoras, esclarecedoras, porém obrigacionais e não me fizeram despertar mais do que prestar contas em sala de aula, infelizmente até aquele momento.

Só tive acesso ao Jornal A Tarde pela benevolência do Dr João Leal, então Secretário Particular de Sua Excelência o Prefeito de Ilhéus – Dr Nerival de Rosa Barros, eleito em 1966 pela UDN, como também aqui o fora o nosso Zé Ramos – José Ramos de Souza. Eles foram muito amigos, a ponto do Dr Nerival nos receber – os excursionistas – e nos proporcionar belas viagens aos pontos turísticos da sua Ilhéus.

Pois bem, lidas as primeiras páginas daquele jornal, reacendeu em mim o fascínio pela leitura.

Este fascínio reavivado, reputo tenha sido o maior aproveitamento que angariei naquela excursão de alunos, a maioria deles imberbes e de situação econômica sofrível.

Leitura de Jornais, daí em diante, somente quando Zé Ramos chegasse da Bahia e trouxesse algum, com uma semana de publicado ou mais. Até mesmo o Diário Oficial me servia pra leitura. Eu não sabia nada do significado daquilo tudo que estava decretado naquele Diário, mas lia e relia, sempre me deparando com termos nunca vistos, a exemplo de dotação orçamentária, insculpida na legislação, ad referendum do Conselho de Ministros, etc., etc., etc.

Mas, para adequar esta minha escrita ao título que escolhi, vou retomar da ideia inicial que, com certeza,  fará justiça ao escolhido.

Quando lia, em A Tarde, os artigos do mestre Jorge Calmon sempre me dizia introspectiva e silenciosamente, o meu ego apreendeu e jamais se apagou de minha memória: estes artigos do Dr Calmon são umas verdadeiras aulas públicas.

Hoje, neste primeiro domingo de março de 2016, tive a graça de reviver o Mestre Jorge Calmon, numa exemplar crônica da lavra de um amigo recente, Marcelo Torres ou Marcelo do Junco (nome antigo do município de Sátiro Dias) como ouso chamá-lo algumas vezes, embora receoso da não aceitação pelo nominado.

O Marcelo publicou, na rede social Facebook, crônica sob o título “Não se esqueça da vírgula”.

Posso lhes asseverar que se trata de um primor de escrita, de uma didática invejável e de um singelo chamamento a revisitarmos os ensinamentos gramaticais.

Aquele escriba navegou, com maestria, em verdadeiros oceanos gramaticais: pilheriou com a formatação de frases e os erros nelas existentes, alertou-nos a todos que figurões do meio jornalístico e de setores sibites da imprensa nacional também cometem erros ao escrever textos e publicá-los. Tudo, tudinho mesmo – como se diz cá no meu Soure – na maior elegância e anotando, caso a caso, a ausência de sua excelência, a vírgula, na composição da frase ou oração; aduzindo a perda do significado pretendido ou a dubiedade do sentido da frase que aquela ausência provocava.

Fez questão, o Marcelo, de avivar em nossas mentes a figura de linguagem denominada vocativo, sua função, seu significado.

Uma verdadeira aula pública!

Obrigado, Marcelo.

Tonho do Paiaiá, revivendo a leitura, reconhecendo méritos.

Nova Soure, 6 de março de 2016

 

Viagem a Soure. Pequenas férias, descanso, centenário….

Cogito ergo sum

Hoje estou indo, em viagem de pequenas férias, à  minha querida Nova Soure, acompanhado de minha Zenaide e de sua mãe D Marocas.

No próximo dia 9 deste mês  (quarta-feira) a minha sogra, D Marocas de Zacarias Guarda, estará completando 100 anos de nascimento. Que graça para todos nós da família! Que alegria para uma família, nos tempos atuais, poder celebrar o centenário de um dos seus membros!

A família decidiu se reunir em Nova Soure para celebração desse momento e acolher seus parentes e amigos, com Missa em Ação de Graças na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, celebrada pelo Bispo Diocesano de Alagoinhas, Dom Paulo Romeu Dantas Bastos.

Natural que, considerando a idade da aniversariante, cheguemos com folga para que a matriarca dos Sousa Cruz possa descansar bastante e repor suas energias.

Como já noticiei, no dia 10 (quinta-feira) tenho um encontro, o dia inteiro, com os alunos do meu antes Grupo Escolar D Pedro I, hoje com nova denominação de Escola ou Colégio não tenho certeza. Mas, felizmente, o modo carinhoso como todos chamávamos – Dom Pedro – creio que desde a sua fundação em 1943, permanece.

Que façamos uma viagem em paz, com a graça e a companhia de Deus!

 

Encontro com alunos do Colégio Dom Pedro I

Prezados leitores, especialmente meus conterrâneos

Recebi um convite do Colégio Dom Pedro I – meu saudoso e lembrado Grupo Escolar e onde iniciei meus estudos – por proposição da Professora Robélia Aragão para “……uma roda de conversa com os alunos do Ensino Médio falando da importância da leitura para todas as áreas d0 conhecimento/profissão…..

Relatou a mestra proponente que a ideia do convite surgiu do “….desenvolvimento de um projeto de Leitura nas escolas da rede estadual de ensino….

Aduziu a professora Robélia que “…..atenta ao seu texto, …. estive com a direção e professores e propus que caso aceitasse o convite receberíamos na escola para uma roda de conversa com os alunos…..

Quero crer e, sinceramente, cri que o interesse da minha participação nesse projeto tenha sido movido após a publicação da minha crônica  O Exame de Admissão ao Ginásio – o menino, o sucesso, a alegria e o castigo – no final do mês de fevereiro último.

Como não poderia ser diferente, aceitei de imediato o convite.

A lisonja é para mim.

A alegria de revisitar as salas de aula daquele Grupo Escolar, após 45 anos, me invadiu e massageou meu ego; me encheu de orgulho. É que, em estágio obrigatório e no ano de 1970, conduzi por alguns meses uma turma de alunos do curso primário do D Pedro, com vistas a formação de magistério na primeira turma do Colégio Normal Cenecista Professora Maria Ferreira da Silva – quanta saudade!

Após as tratativas de praxe, combinamos que nosso encontro será no próximo dia 10 deste mês (quinta-feira).

O evento deverá durar o dia inteiro e se destina aos alunos dos três turnos do D. Pedro.

A professora teve o cuidado de explicar que “O público é diverso para atrair a atenção.”

Discorreu que “o público é composto de alunos do Ensino Médio. Os turnos matutino e vespertino são de ensino regular. Pois são alunos da zona rural e urbana. São juvenis. Já o noturno são da Educação de Jovens e Adultos.

Esclareceu que há “ muita gente fora da escola há bastante tempo. Tem senhores e senhoras, grande parte trabalhadores e da zona rural.“.

Estou consciente da minha responsabilidade de passar para os alunos a minha trajetória desde menino estudante a profissional, já aposentado.

Mas o fulcro do nosso encontro é transmitir-lhes, aos alunos do Dom Pedro, a importância da leitura na vida das pessoas e de que ela (leitura) é absolutamente capaz de transformar pessoas e o mundo.

Até lá meus amigos, meus conterrâneos, meus alunos!

 

O Exame de Admissão ao Ginásio — o menino, o sucesso, a alegria e o castigo —

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Findava o ano de 1963, Brasil governado por João Goulart Jango, vice-presidente eleito em 1960. Assumira a presidência no lugar de Jânio Quadros — o homem da “vassoura na mão” — que renunciara, alegando pressões de “forças ocultas”.

O Ginásio Professora Maria Ferreira da Silva já partia para sua terceira turma de alunos, a iniciar em março de 1964. Era o deslanchar da educação em nossa Nova Soure; afinal a terceira turma estava garantida e o sucesso já não era ponto de incerteza, era factível, estava desenhado, viria com certeza — como viera e ficara.

A direção do Ginásio abrira a concessão de admitir que novos alunos do Grupo Escolar Dom Pedro I, mesmo não tendo prestado exames no prazo normal, participassem do Exame de Admissão do Ginásio em “segunda época”.

Naquele tempo alunos reprovados no primeiro momento — normalmente provas efetuadas em dezembro de cada ano — podiam tentar nova chance na “segunda época” no mês de fevereiro do ano seguinte. Era assim que a banda tocava na educação em todo Brasil.

O menino estudava no Grupo Escolar Dom Pedro I, única escola pública na cidade. Naquele ano, fora aprovado com louvor na conclusão da quarta séria do curso primário. Ainda teria que cursar o quinto ano para, então, se habilitar ao exame de admissão ao curso ginasial.

Sua professora do curso primário, Maria do Carmo Fonseca Biscarde, mandara chamar sua mãe e, após conversarem bastante sobre seu aluno, professara: “…… pode mandar ele fazer o exame de admissão; tenho certeza que ele passa. Suas notas são das melhores aqui na escola, embora não tenha boas notas em comportamento pois tagarela com todo mundo o tempo inteiro”.

E prosseguira a professora: “ …… a letra dele não é boa — mesmo com o caderno de caligrafia que tem e fazendo os deveres de casa todos os dias. Mas escreve certinho nos ditados e tem apresentado poucos erros de português; conjuga bem os verbos, sabe o que é o sujeito, o predicado que verbal, nominal e verbo-nominal; já distringue os adjuntos adnominal e adverbial. Conhece bem ciências, geografia – sabe todas as capitais dos Estados e a maioria das capitais dos países da América do Sul – não tem muita afeição por história; mas conhece o básico para prestar os exames. A senhora não tenha receio, estou lhe dizendo.

Na matemática é muito bom mesmo: sabe as quatro operações e até já faz conta de multiplicar e dividir de três letras – três casas – após as operações tira sempre a prova dos noves — noves fora — e a prova real. Já conhece e resolve, porcentagem, juros simples e compostos e regra de três e de sociedade. Resolve problemas com frações e sabe usar o MDC (máximo divisor comum) e o MMC (mínimo múltiplo comum) adequadamente. Pode acreditar, ele está preparado. Minha turma é muito boa e ele está entre os melhores”.

A matriarca, coitada, estudara lá no Paiaiá apenas as primeiras letras e as quatro operações; simplesmente. Voltara da escola do seu filho bombardeada com tanto cabedal de estudo que aquela figurinha acumulava e que não era do seu conhecimento, absolutamente. Mas, orgulhosa; orgulhosa sim de ter escutado aquele depoimento sincero de uma mestra comprometida com a educação dos alunos que lhe eram confiados.

Em casa, aguardando a chegada do menino — havia saído para encontro com seus colegas de brincadeiras — chorara, silenciosamente, lembrando o depoimento professoral. Prometera a si mesma que o encaminharia ao Ginásio para o Exame de Admissão — como houvera se comprometido com a professora dele — assim faria.

Aquele menino esguio, estatura mediana, pesando no máximo uns trinta e cinco quilos, contava já com doze anos, havia completado no mês de novembro do ano findado.

Ao chegar em casa, após a brincadeira da tarde com seus amigos — preferencialmente da vizinhança da rua onde morava, não era autorizado a ir longe dali — fora chamado por sua mãe.

Amanhã você vai ao Ginásio fazer requerimento para prestar o exame de admissão, dissera sua mãe em tom imperativo e sem abertura de qualquer chance de argumentação.

O garoto não se dera por vencido: “…mais mãe eu só tenho doze anos e nem completei o quinto ano primário. Rumão de Seu Ricardo e Cardoso de Bento me disseram que eu só posso fazer admissão no final do outro ano, no mês de dezembro. Eles dois já fizeram e passaram …..”

Você não me respeita não?! Dirigindo-se em sua direção a matriarca lhe inquire com rispidez. Pode ir se preparando. Amanhã José de Armando e Luiz Antonio de Ariston estão vindo do Paiaiá para também fazerem seus requerimentos. Já falei com os pais deles e eles vão prestar o exame de segunda época também.

O menino tinha visto vários de seus ex-colegas serem aprovados no exame de admissão ao ginásio, já tinham idade suficiente, já haviam sido aprovados no quinto ano primário. Estavam aptos a estudarem no Ginásio e ele com um certo sentimento de saudade e tristeza. Saudade pelo fato de não encontrar aqueles amigos-colegas no próximo ano na escola; tristeza porque ficara atrasado em relação a eles. Não iria estudar no Ginásio; só no outro ano.

Brincadeiras mesmo só depois das aulas e, agora, bem menos. Os seus amigos daquela rua já estavam com responsabilidades maiores na vida escolar. Havia, no entanto, um fio de alegria; seus primos iriam fazer o exame de admissão e poderiam ser seus novos colegas de escola. Eles estudavam na Escola Rural do Paiaiá, estabelecimento de educação que, na década de 50 do século passado, tivera no seu quadro de professores a mãe de uma cantora-astro da atualidade, de sobrenome Sangalo.

Chegado fevereiro de 1964, a vida política brasileira estava em ebulição. Uma boa parte da sociedade — políticos ou não, intelectuais ou não, militares ou não — nutria receio de que o Presidente se inclinava para o lado daqueles que tinham como lema o comunismo, quer internamente quer internacionalmente, era o que se propalava nas rádios, nos jornais e nas revistas.

O menino, alheio a tudo aquilo, só pensava no requerimento fizera para prestar Exame de Admissão; na possibilidade do insucesso e da possível reprimenda que lhe poderia ser imposta — provavelmente uma surra mesmo (uma pisa, termo como era usado naquele tempo). Como se diz no meio sertanejo “além de queda, coice”, não bastaria o infortúnio da reprovação ainda estaria sujeito a castigos físicos — tudo isso normalíssimo para a época.

Provas marcadas, em dias diferentes, primeiro as escritas, depois as orais. Assim se processavam os exames naqueles tempos. Era necessário mostrar que tinha conhecimento pleno das questões que lhe fossem apresentadas.

Na língua pátria tivera como examinadora a Diretora do Colégio, professora Maria de Lourdes Ferreira da Silva – Dona Morena; na matemática o Cirurgião Dentista, com baixa recente no Exército Brasileiro, no posto de segundo tenente, Dr Carmo Biscarde Filho (Dr Carminho como lho chamavam); na geografia e nas histórias: geral, do Brasil e da Bahia — naquela época estudava-se os três níveis separadamente — a professora Iraildes Belchior de Souza, vinda do vizinho Estado de Sergipe para ensinar em escolas do município.

O Exame, as provas aplicadas, o resultado.

Língua portuguesa: ditado anunciado e o menino a transcrever — no papel pautado, com uma dobra no lado esquerdo medindo em torno de quatro centímetros — o que ouvira da mestra-diretora, se esmerando na formatação das palavras, na pontuação e acentuação (tudo exigido na oportunidade). Conjugara verbos, classificara-os, identificara o tempo e modo verbais. Determinara o sujeito da oração, o predicado e adjuntos. Na prova oral respondera sobre sinônimos e antônimos; sobre sujeito na oração; classificação dos verbos – tivera dificuldade na pronúncia, dado o significado fonético de alguns deles, como os defectivos e abundantes. Receava assomar com corruptelas das palavras e tascar “defecados” ou “bundantes”, mas dos anômalos não receara.

Aritmética ou Matemática: resolvera problema com frações ordinárias as próprias, impróprias e aparentes – para isto se valera do MMC — e decimais, que dizem tornou–se obrigatória com a Revolução Francesa. Apresentara resultado de uma conta de dividir de três letras (três casas) com as provas real e dos nove. Na prova oral desta matéria pouco lhe fora perguntado, até por que não havia muito a explorar oralmente neste campo, mas respondera sobre medidas de volume.

Geografia: apresentada uma série de cidades para que fosse identificada sua localização nas regiões do Brasil. Norte, Sul, Sudeste, Nordeste; identificação de climas no mapa do território brasileiro; tudo respondido direitinho e com segurança. Na prova oral respondera sobre as regiões brasileiras onde predominava o plantio de cana-de-açucar; quais os rios que banhavam algumas cidades ou estados brasileiros e onde se situava o famoso rio Nilo.

História: lembra que estudara por um livro que tinha como autor Victor Mussumeci a parte de história geral e do Brasil e apreendera muita coisa; afinal se deparara com nomes estranhos e interessantes como Nabucodonosor, Mesopotâmia (terras entre rios); nomes de faraós, desde Ptá — Deus criador e divindade patrona da cidade de Mênfis,—no período lendário — 5.400 a.C a 5.340 a.C — , passando pela Dinastia IV com Quéops, Quéfren e Miquerinos, até a Dinastia Ptolemaica —305 a.C a 30 a.C — com os Ptoloméus I a XV e outros nomes mais estranhos possíveis.

Vieram as perguntas na prova escrita e não tivera dificuldade de responde-las. A maioria delas de história geral. De história do Brasil somente sobre a independência do Brasil do Reino de Portugal e proclamação da República. Mas, na prova oral, experimentara a rigidez da professora Iraildes: ela não dava tréguas e ela havia de responder de imediato e sem gaguejar. E vieram as perguntas: a) os visigodos saquearam Roma sob o comando de Alarico, Teodósio ou Honório? b) quem assumiu o governo brasileiro com o retorno de Dom João VI a Portugal?

Não é vergonha dizer que errara uma das respostas. Jamais ouvira falar dos visigodos e muito menos naqueles homens citados: Alarico? Quem fora ele? Teodósio? Honório?. Aqueles nomes soaram muito estranho em seus ouvidos.

Terminadas as provas, numa tarde de quarta-feira, o menino fora pra casa meio que receoso. Afinal nas provas orais errara uma pergunta em história e gaguejara muito em geografia. Em língua portuguesa saíra-se muito bem e em matemática não se fizera de rogado respondera todas e ainda perguntara se tinha mais alguma pergunta a ser feita — ousadia e exibicionismo daquele pirralho. O professor, embora rígido e disciplinador, sorrira e lhe parabenizara pela altivez — grande lição aquela.

Na quinta-feira à tarde fora em busca do resultado. Quase é reprovado por conta do baixo aproveitamento em geografia e história; em tese fora reprovado nestas duas matérias. Sua redenção fora o resultado das notas de português e matemática; ajudaram muito no cômputo geral. Passara arrastado – como se dizia antigamente – nota final cinco! Mas, ora bolas, passara. Iria cursar o Ginásio, logo ali no mês de março, faltavam poucos dias.

A alegria lhe invadira; não procurara saber de nada, quando seria a matrícula, como e onde, quais documentos seriam necessários, etc., etc.

Partira a toda. Dum só fôlego chegara em casa; ofegante dera a notícia à matriarca: mãe passei! Vou estudar no Ginásio!

Nem aguardara para ouvir as palavras de satisfação da matriarca, nem viu o seu (dela) semblante de orgulho e alegria pela vitória do seu menino. Trocara de roupa e, imediatamente, se dirigira ao campo de futebol. Era dia de treino do Santos Futebol Clube daquela cidade — dirigido por um homem alto, amigueiro, falastrão e apaixonado por futebol: seu Zé Bambão — clube do qual era torcedor e admirador de muitos dos seus jogadores, inclusive três deles seus vizinhos de rua, Bicudo de Seu Zé Dantas, Carlos e Iôia de Zuca de Pomba.

Admirado com a performance daquele time de futebol, sorridente com o sucesso, viera trocando ideias com amigos sobre as jogadas dos seus craques e confiante na vitória, no domingo próximo, contra o Flamengo – dirigido por Dr Carminho – e que tinha nos seus quadros um dos seus maiores amigos e colega de escola Toinho de Ariston e o inesquecível Esmeraldo de Totonho de Olímpio – o maior frente de zaga que vira jogar no futebol amador.

Qual não fora sua surpresa ao chegar em casa encontrar a matriarca furiosa: a matrícula começara naquela mesma tarde e só iria até o dia seguinte. A diretora do Ginásio, sua comadre, zelosa com aquela criaturinha frágil e de pouca experiência — o menino vitorioso —  mandara lhe avisar que seu filho não comparecera para a matrícula.

Resultado da inobservância dos seus deveres de estudante: levara uma bela surra por não ter tomado as providências de matricular-se no primeiro momento; era, no mínimo, sua obrigação.

Não bastara ter sido vitorioso no Exame de Admissão ao Ginásio, era necessário que cumprisse com o seu dever de estudante; era exigível que cuidasse primeiro da obrigação, depois do lazer.

Tonho do Paiaiá.

Reminiscências de um menino estudioso, porém relapso por conta da alegria.

 

 

O repique dos sinos na Matriz bicentenária

Matriz Bicentenária

Neste instante, cinco horas da manhā de 8 de dezembro de 2015, repicam os sinos da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, seguidos do espocar de fogos de artifício e da sempre presente Filarmônica 8 de Dezembro, executando seus dobrados de cunho sacro ou não!

É o anunciar da alvorada no encerramento dos festejos da nossa Padroeira.

O repique dos sinos já não é o mesmo de quando, ainda menino, lá pela década de 1960, tive a graça de ver e escutar a maestria de dois sineiros da minha amizade. Ambos meus colegas de escola e amigos de infância; daqueles que dividiam as alegrias, tristezas, confidenciais e cumplicidades.

O primeiro deles Miguel Luiz da Conceição – Miguel de Zilinho ou Miguel de Miúda ou Miguel de Dundun – era assim nominado por muitos.

Pra mim sempre foi, sempre o é Miguel ou Mestre Migas. Este de idade anterior à minha e já nos tornamos colegas no ensino da Escola Normal, além dos serviços na Prefeitura; das serenatas e comemorações do aniversário do saudoso professor Zé Élio de Pedrito de Cazé (José Élio Costa e Silva) e da incursão no jornalismo estudantil na época de ouro da Educação de nossa querida Nova Soure – quando editávamos e distribuíamos O Jornormal, sempre com a participação do colega de sala Renan de Zé Enfermeiro (Renan Hermes dos Santos), de saudosa memória.

O Jornormal era um periódico escolar, tinha edição mensal e uma tiragem muito pequena. Sua impressão se dava por um mimeógrafo a tinta, gentilmente cedido pelo Pároco de então, nosso queridíssimo Padre Otávio Gonçalves da Silva, o primeiro professor de língua francesa do Ginásio Professora Maria Ferreira da Silva, fundado em 1961 pelo saudoso Zé Ramos (José Ramos de Souza) tendo como entidade mantenedora a CNG – Campanha Nacional de Escolas Gratuitas, depois CNEC – Campanha Nacional de Escolas da Comunidade.

O outro, Francisco Romano de Carvalho ou Rumão de Seu Ricardo da Careteira, de idade bem próxima à minha, colega de sala no Grupo Escolar Dom Pedro I desde e com a Professora Eunice Matos, isto por volta de 1958 em diante.

Era exímio em matemática o Rumão, brincava com os números e nos ensinava quando íamos nos submeter a provas – naquele tempo provas mensais, parciais e finais.

Aprendera o ofício do pai de Jesus Cristo – marceneiro – ele já contava com alguns do ofício na família e os seus pais o levaram a este aprendizado.

Rumão fora meu colega até no curso ginasial; fora trabalhar em São Paulo, retornara em pouco tempo casara, depois viera a falecer, deixando dois filhos. Tenho muitas saudades do colega, vizinho de rua e amigo das brincadeiras de garoto.

Mas os sinos desses dois momentos tinham um repique magistral, empreendido pelos dois sineiros, colegas-amigos, em tempos distintos. Como disse, era uma verdadeira sinfonia sineira.

Os repiques dos sinos eram mais musicais, melodiosos, invadiam os lares como se uma sinfonia fosse; sua sonorização era escutada e apreciada a quilômetros da Matriz.

Havia mesmo melodia naqueles repiques.

Os sinos eram originais ainda; todos nos deliciávamos ao ouvi-los, era uma verdadeira festa aos nossos ouvidos!

Hoje um dos sinos, o da marcação (o de tom grave), está com a sonoridade como que fanha; sofrera uma pequena fenda em sua borda, está quase surdo, destoante mesmo!

Ora, mas são os sinos originais da nossa Matriz, estão lá da mesma forma de quando chegaram e foram instalados na sua torre!

Atravessaram no mínimo dois séculos sempre a invadir os lares dos novassourienses nestes momentos de ‪‎alvorada da festa de Nossa Senhora da Conceição!

Rumão, onde você estiver toque auqeles repiques para que o Pai celestial e os anjos ouçam com alegria e façam chegar a melodia envolvente de outrora até meus ouvidos!

Miguel, mestre Migas, Miguel de Dundun, sonho em ainda escutar um repique desses sinos, mesmo sem aquela melodia que nos encantava a todos, sob sua maestria e execucāo!

Está lançado o desafio.

Lhe espero nos festejos de 2016 !

Recordando meus passos de idas à Igreja, a cada 8 de Dezembro, entre 1958 e 2015.

Tonho do Paiaiá (Antonio Mário Bastos)

Resgatando o pão dele de cada dia


ze-ramosA primeira investidura de Zé Ramos (José Ramos de Souza 1921-2002), no cargo de Prefeito do Município de Nova Soure, ocorrera em 1959, após Eleições ocorridas em 3 de Outubro de 1958, sucedendo ao Dr Manelito (Emmanoel Ferreira da Silva, cirurgião dentista de profissão e político por opção, com quem tive a honra de privar de uma amizade sincera).

Naqueles tempos a municipalidade não tinha condições de adquirir um veículo automotor para prestação de serviços públicos, tampouco para o deslocamento do seu alcaide. Afinal os recursos arrecadados eram ínfimos e só davam mesmo para manutenir os próprios do município e prestar os serviços públicos obrigatórios e necessários, mesmo assim, com muita dificuldade e talvez com ineficiência.

De veículo mesmo a Prefeitura dispunha somente de uma carroça de madeira, com duas rodas e utilizada, principalmente, para o recolhimento do lixo urbano, puxada por uma burra (mula) fornida, bem cuidada e bastante velha. O cocheiro era um homem afrodescendente, de pequena estatura, compleição física alargada e com certa dificuldade de locomoção, radicado em Nova Soure há muito tempo, vindo lá das bandas dos Catorze — povoado do Município do Inhambupe — conhecido como Chico Lixeiro.

Zé Ramos era proprietário de um veículo Jeep, fabricado pela Willys Overland do Brasil, que o utilizava na idas e vindas às suas fazendas e nos deslocamentos para a Capital da Bahia, em busca de verbas para ajudar na sua administração e contatos com políticos de então, principalmente o deputado representante do município na Assembleia Legislativa o Dr Acioly Vieira de Andrade, filiado à antiga UDN – União Democrática Nacional, nascido no Município de Cícero Dantas — governara, como Prefeito nomeado, os municípios de Feira de Santana e Cipó.

Estrada asfaltada só a partir de Alagoinhas e olhe lá. Portanto, dá pra imaginar o tempo de viagem entre Nova Soure e Salvador; no mínimo um dia, sem contar com percalços de atoleiros ou pequenos defeitos no veículo, se viessem a acontecer.

Certo dia, Zé Ramos fora chamado à Bahia – assim chamávamos a nossa Capital, provavelmente em referência à Baia de Todos os Santos – para encontros com políticos com vistas a garantia de emendas orçamentárias que beneficiassem a administração municipal. Saíra do Soure na terça-feira pela manhã, só retornando na sexta-feira da mesma semana, no seu Jeep Willys, velocidade empreendida na casa dos 60 km por hora, no máximo.

Chegando em Olindina, parou na cidade para tomar água e conversar com alguns amigos e logo em seguida retornara o curso da viagem ao Soure, no seu veículo.

Na saída pro Soure, na altura do pontilhão, um jovem dera com a mão – um pedido de parada do veículo – pretendendo obter uma carona até sua residência. Naquele tempo podia-se dar carona, sem risco da violência a que hoje assistimos todos os dias.

De pronto Zé Ramos reconhecera o passageiro, parara o veículo e cumprimentara o viajante. Era um rapaz trabalhador, jovem pai de família e que morava na Bandinha – era como chamavam o Paiaiá naquele tempo.

Vai pra onde, lhe pergunta Zé Ramos?

E o jovem rapaz, todo acanhado, lhe responde: vou pra Bandinha; o senhor pode me levar até lá?

E Zé Ramos: claro que sim; pode montar, abrindo a porta do carona para acesso do passageiro.

O jovem bandinhense (ou paiaiaense mesmo) que já vinha caminhando em direção à sua casa, ficara extremamente alegre além de agradecido.

Primeiro por ter sido reconhecido pelo Prefeito do seu Município; segundo porque viajaria de carro e pouparia suas energias para a lida na roça no dia seguinte.

O jovem trazia na mão um saco de papel com alguns pães, decerto para sua família. Era um produto raro; somente em cidades se tinha acesso a padarias, em povoados não existiam esta espécie de indústria, a panificadora.

Viagem empreendida, conversa daqui conversa dacolá – de quando em vez o jovem enfiava a mão no saco, rasgava um pedaço de pão e levava à boca, não sem antes oferecer: “…. o sinhô é seuvido seu Zé ?” e Zé Ramos sempre dispensando a oferta.

A prosa fora muito boa e gratificante a ambos. Pra Zé Ramos que conseguira uma companhia, afinal viera sozinho de Salvador até ali. Pro jovem que descansaria as pernas na caminhada de 11 km até sua casa.

Pronto. Chegado à Bandinha ou Paiaiá, o jovem pedira a Zé Ramos que o deixasse em frente à Igreja de São José do Paiaiá – além de ser ponto referencial, ele desejava fazer uma oração agradecendo aquela carona e encomendando pedidos a São José em favor do proprietário do veículo.

O jovem agradecera o préstimo de Zé Ramos e este seguira viagem. Ainda ia passar na Fazenda Brejo Grande, para bater um papo ligeiro com Zé Pequeno de Sinhá (José Moreira de Carvalho), chefe político daquele povoado e seu amigo, como o fizera.

Chegando ao Soure, já quando o sol começara a se esconder, providenciara colocar o Jeep Willys na garagem.

Quando já estava fechando uma das bandas da porta da garagem ouve aquele chamado em voz alta: “seu Zé Ramo, peraê, num feche não, esqueci uma encomenda no seu carro”.

E Zé Ramos, que não tinha percebido o saco de papel com os pães do jovem no seu carro, lhe perguntara: esqueceu o que?

E o jovem: meus pães seu Zé Ramo. Entrei na igreja, rezei dois “padre nosso” e duas “avimaria” pra mim e pro sinhô. Quando cheguei em casa a muié perguntou: “trove” os pão? Batí a mão na testa e disse: ô mizera meu Deus, deixei no Jeep de seu Zé Ramo, vou lá buscar e tome lhe perna  pro Soure.

Parou somente na braúna de Manezinho Galo pra ajeitar a alpercata de tope que estava incomodando seus pés, ainda era nova e não estava amaciada. Subiu a curva do Si dum fôlego só; cumprimentou Alonso de Glória na porta do seu buteco lá nos Paus-brancos e desceu em procura da estrada dos índios e já avistou a cidade. Que alegria! Tava chegando ao Soure, iria resgatar o pão dele de cada dia, iria presentear muié e filhos com o alimento pouco visto no povoado.

Consta que no retorno a penitência junto a São José foi bem maior, o jovem já encontrara a igreja fechada, passava das 8 horas da noite. Chamou na casa de Dona Das Neves – Maria das Neves Prado, que tomava conta da igreja e hoje nomina a Biblioteca do Paiaiá e lhe implorara “ Dona Das Neves, pelo amor que a senhora tem a Nosso Senhor Jesus Cristo, me abra a igreja que quero pagar uma penitência” e tascou 5 “padre nosso” e 5 “avimaria” agradecendo ter ainda encontrado e resgatado o pão dele de cada dia.

O jovem empreendera uma viagem, a pés, de 22 km – ida e volta – entre a Bandinha ou Paiaiá e o Soure ou a Natuba como também o chamavam, para resgatar o pão dele de cada dia.

Concluído nesta madrugada do último dia de Janeiro de 2016, nos meus aposentos do Soure, antes da viagem de retorno a Salvador.