Geraldo Prado, um setentão com força de menino!!!

Bom dia dona moça! Vamicê conhece Geraldo Prado?

Quem??? Geraldo Prado?!!! Sei lá quem é esse fio de Jesus!!!

Mas dona moça, intonse vamicê num conhece seo Geraldo de Dona Maria de Dolí?!!! Aquele homem que fez uma biblioteca lá no Paiaiá?!!!

Ah…… agora o senhor me clareou o juízo!

Num é aquele moço simpático, Geraldo-fotoque tem mais de 120 mil livros numa casinha que ele chama Biblioteca do Paiaiá?!!!

Conhecer, conhecer mesmo, de carne e osso, num conheço não. Mas ouço falar dele todo santo dia, lá na Melancia onde moro. É que num sou do Paiaiá não, sabe?!!!.

Os meninos lá de casa e dos vizinhos; os da escola; os da catequese da igreja, comentam sempre sobre esta tal de Biblioteca do Paiaiá.

Vivem dizendo que lá tem mais livro que as escolas todas do município,livros juntando inté uma biblioteca quem tem na rua do Soure: tudo junto num chega nem perto dos livros de seo Geraldo.

Sabe mais o que dizem os meninos: que lá tem essas revistinhas de desenho; tem computador com uma tal de internet; o povo vai jogar lá um tal de xadez – meninos e véios – passa filme de cinema e tudo. Disseram até que istodia teve curso pra muiés aprenderem corte e custura e tudo mais. Mas num s’espante não: disseram que tem gente até aprendendo a desenhar e pintar panos de prato e o escambau!!!

Será qu’é verdade mermo o que esses meninos tão dizendo, meu sinhô?!!! Será que naquele povoado, que num mora nem mil pessoas, tem tudo isso mesmo?!!!

Olha dona moça, vou lhe dizer – como tivesse dizendo a Nosso Senhor Jesus Cristo que quero me salvar: tem tudo isso e mais algumas coisas.

Seo Geraldo – nascido no Paiaiá, foi aluno da mãe de uma famosa cantora chamada Ivete Sangalo, viajou de pau-de-arara pra ir trabalhar em São Paulo, penou na vida um bocado, estudou e tudo mais. Venceu, tá todo mundo vendo isso.

Hoje é um Doutor que ensina a um monte de gente na Universidade do Rio de Janeiro, onde mora, faz pesquisas, dá palestras, não cansa aquele homem – anda no mundo todo, fala com os gringos num bocado de língua estrangeira como se tivesse falando com a gente, conhece uma boa parte da Terra –  até parece que tem o juízo mole, viu!!!

Num é que o homem construiu um sobrado lá no Paiaiá Sobradosó pra botar lá dentro tanto livro, mas tanto livro mesmo, que até um doutor reitor da Universidade lá da Bahia foi lá ver de perto e fez até discurso pra’quele povo todo que foi pra inauguração.

Mais dos dias ele promove uns encontros de gente letrada lá no Paiaiá.

Dia desses levou pra lá até um imortal da Academia Brasileira de Letras, o escritor Antonio Torres, o primo dele Marcelo Torrres, também escritor e lá de Brasília; Professora Doutora Walnice Nogueira Galvão, da Universidade de São Paulo – publicou artigo “ As proezas de Alagoinha” sobre Geraldo – uns professores da Universidade do Rio de Janeiro, da Universidade de Feira de Santana e até da Universidade de Aracaju, além de muitos outros que agora não me vem à memória. O homem é quente mesmo. Não duvide!!!

Está marcado, para os dias 3, 4 e 5 de agosto vindouro, um encontro de gente letrada lá na Biblioteca do Paiaiá – III Encontro sobre Livro, Leitura e Inclusão Social no Semiárido Baiano – vai ter gente de todo lugar e de todo gosto cultural. EventoVamicê não quer ir lá não? Acho que seria uma boa oportunidade de conhecer aquilo tudo e até estar com seo Geraldo, quem sabe? Se vamicê for lhe apresento a seo Geraldo, lhe garanto.

Hoje, por sinal, seo Geraldo tá fazendo aniversário.

É o aniversário de Geraldo Prado ou Geraldo Moreira Prado, ou Geraldo de Dona Maria de Dolí, ou Alagoinha como lhe apelidaram lá pra bandas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Pra mim é o aniversário de Geraldo de Maria de Dolí, o conheço por este nome desde eu criança lá no nosso Paiaiá.

Hoje ele está completando 77 anos bem vividos – dois martelos como se dizia no jogo de vísporas lá no Bar de Bicudo, na rua do Soure e no Bar 7 Portas cá no Paiaiá.

Muito embora com esta cronologia avantajada, continua uma pessoa jovial, alegre, atenciosa, dedicada, às vezes um visionário. Mas não se entrega; é um verdadeiro trator na busca do melhor para as atuais e novas gerações no campo cultural.

Posso arriscar a dizer que, em dados momentos, se torna um Don Quixote cultural. Enfrenta moinhos de ventos de insensatez de pessoas comuns e de pessoas públicas; nada disso o faz esmorecer. Pelo contrário, segue em frente em busca de patrocínios e de garantir políticas públicas consentâneas e responsáveis para com a educação e a cultura.

Soube que há bem pouco tempo Geraldo estivera visitando a Escandinávia, onde pleiteara fundos de apoio para desenvolvimento de atividades culturais na Biblioteca do Paiaiá. Veja quanto esse homem se dedica àquela casa de cultura e não só a ela, também ao ensino e à cultura.

Escrevo este texto com a finalidade de parabenizar e homenagear esse meu conterrâneo; acima de tudo de reconhecer o trabalho e dedicação que Geraldo tem feito em prol da Cultura – sem fronteiras – me associar a ele nessa cruzada e desejar-lhe tudo de bom que a vida lhe reserva.

Parabéns Geraldo Prado!!! Feliz aniversário!!!

Tonho do Paiaiá, 28 de julho de 2017
Um conterrâneo e admirador

Não duvide, cabe um jegue numa sanfona.

 

UmJeguenaSanfona

Ambientado no Vilarejo do Seremão, nas plagas de Nova Soure, com relato fidedigno de Elísio de Quintino de Prima, carpina de marca maior, quietude tamanha a ponto de desconfiarmos da sua verve anedotária.

Fim de tarde, inverno primoroso, todos se dirigiam para casa após a lida diária de limpa das lavouras de feijões, milhos e abóbora.

Era uma sexta-feira do mês do junho já na rabeira do São João. O primeiro a chegar foi o Bigode – Zito de Quintino de Prima – na sua bicicleta monark, barra circular, ano 1968 e em perfeito estado de conservação.

Ponto de encontro o buteco de Zé Oreinha — este fora acometido de cegueira, por conta da diabetes, e servia seus fregueses colocando o dedo indicador, na posição vertical, dentro do copo de extrato de tomate antes de levar a pergunta: vamicê quer uma cheia ou uma meiota?

Todos clamavam por um forró – forró dos bons, como adejetivava o Zé Coco de Carlito de Jovino. “Pra que esse negócio de tá indo pra rua, pro tále de apoteose, tendo que pagar passagem a João Branco que carrega até dezesseis pessoas adultas na sua Saveiro ano 1978, pneus carecas e já sem um farol dianteiro e nenhum na traseira?!”

Saltou de lá Tonho de Paulo, “homi é mermo, né?! Pur quê nois num faz nosso forró aqui mermo, lá no salão do prédio escolar?”

Mingo de Toinzinho Bispo não se fez de rogado. “Bem meus camarada, figura pra dançar nois tem até dimais; o som a gente pode contratar o de João da Porca – ferreiro remanescente na cidade do Soure e músico multifacetado – e os infeites a gente pede a Seu Mirez – fazendeiro e comerciante, proprietário da Fazenda Grutas do Seremão e da JM Sat – por conta da propaganda da casa de comércio dele”.

João de Pedro ali do lado, pitando seu cigarro de fumo de corda, brada: cum que safona? Nem uma concertina nois tem?”

Pronto. Estava instalado o problema e era necessário ser resolvido logo; afinal o São João já tava em cima.

Nini de João de Pedro, que também vinha da limpa da lavoura falou logo: soube que lá no Povoado do Cabeleiro tão vendendo uma Oito Baixos. ###1Pe de bodeÉ Pedro de Nita e tá pedindo oitocentos e cinquenta contos; num tira um minréis, num adianta nem chorar. Quem me disse foi Vando de Carlinho de Bêia.

Zé Preto, filho de Expedito, tava assim de lado conversando com Zé de Regina e disse: tocar eu toco a noite toda, exijo respeito e num quero brigadeira de bêbo, nem dentro nem fora do salão, muito menos neguinho com faca na cintura.

Isto fez a união, imediatamente. Todos, a uma só voz, falaram afoitos e com alegria transbordando: vamos juntar e comprar a oito baixos de Pedro de Nita.

Alí chegavo o momento de ter o São João do Seremão, em primeira edição.

Zé Côco de Carlito doou duas diárias das que ia receber de Seu Mirez pela limpa do milho e capim, Zé Branco de Quintino de Prima, como tinha sobra de feijão de plantar, doou duas sacas de oitenta litros, Zezinho de Toinzinho Bispo disse: ###3porca de zezinhoeu dou uma porca que tem quase cinco arrobas. Pedrinho de Zé Bispo se dignou a fazer o palco pro sanfoneiro e os tocadores de zabumba, triângulo e pandeiro, portanto não iria doar valor pra compra da sanfona.

Ali afastado tava Expedito que acabara de apear do seu jegue, nominado brincadeira, ###2jeguevindo da roça de Dé de João de Ninguém onde trabalhara o dia inteiro, se dirigiu aos amigos e vociferou: dou este jegue, vendam e interem a sanfona.

Pronto, pronto. Feito o negócio. Zé de Regina que é de lá do Cabeleiro vai se encarregar de recolher as doações, transformar em dinheiro na segunda-feira e comprar a sanfona de Pedro de Nita, logo no outro dia.

Empreitada de sucesso. Zé de Regina, após pegar os valores em dinheiro e fazer outros valores com a venda das doações, apurou 945 contos de réis. Vamos contar direitinho e anotar, nome por nome e quanto foi que deu cada um, na caderneta de fiado de Zé Oreinha. Era o livro de tombo do Seremão, a partir dali – um livro de capa dura que Zé Ramos tinha levado pra ele Oreinha, no ano de 1967, com a finalidade de anotar as empreitas de limpeza de pasto e roçagem e destoca da Fazenda Buraco D’água, tudo sobre a direção de Seu Filhinho e rancho sob a responsabilidade de Zinho Bungunço.

Mas…., pere ai; disse Carlinho de Astério – que doara vinte litros de leite de vaca ###4vaso de leite– vai sobrar dinheiro ai depois de comprar a sanfona.

Num tem probrema, disse Tonho Surdo, o resto a gente compra a pinga pra noite de São João.

Consenso rápido. Ninguém titubeou.

Sanfona comprada, entregue a Zé Preto de Expedito, que começou a ensaiar as modinhas, principiando por Asa Branca e Apologia ao Jumento de Gonzagão, indo até a Sivirinha Xique-Xique e o Rock do Jegue de Genival Lacerda, sem esquecer o Forró Desarmado do Trio Nordestino.

Chegado o dia. Choveu de manhã à noite, chuva fina molhadeira. As mulheres infeitaram o prédio escolar com bandeirolas e cercaram a parte da entrada com palhas de licuri. João da Porca veio instalar o som e exigiu muito cuidado com seu material, pois ainda ia alugar a Teodoro de João Sabiá, pro São Pedro do Raso.

Tudo nos conforme. Chegou a hora da festa. Um sucesso! Alegria geral.

Se o cabra num fosse do Seremão, pra entrar só com convite e a triagem era feita por Toinho de Carlito de Jovino porque num bebe nem dança, mas namorador que só ele.

Uma modinha de lá, outra modinha de cá, um pedido ali, outro acolá, e Zé Preto de Expedito fagueiro na oito baixos.

Num parava, num tinha intervalo, foi assim o combinado. Se o sanfoneiro não aguentasse que pedisse arrego. E nada de Zé Preto fraquejar.

Expedito, lá pela madrugada adentro, lembrou da doação do jegue e, querendo dar uma canja, gritou a todos pulmões: pára, para sanfoneiro. Vou tocar uma música que aprendi quando tava em São Paulo. Que negócio é este de Zé Preto de num parar nem pra verter água? Qu’eu vou tocar uma, vou.

Instalada a querela, foi um alvoroço. Um dizia tu sabe lá tocar urubu de seca; outro dizia quem é doido de se desfazer destas músicas de Zé Preto pra escutar Expedito, barbeiro c’uma peste na concertina, só se for do miolo mole?!

Tentaram uma solução diplomática, sem sucesso. Zé Oreinha de lá do canto do salão, sem saber pra onde tava se dirigindo, levantou o falou: toca pra frente; puxa o fole Zé Preto, nois só sai daqui dimanhã e com você tocando.

S’aquete Expedito, vamicê num vai tocar coisa ninhuma. Depois da festa, peça emprestado a oito baixos e leve pra sua casa pra tocar pra sua famía. Nois é que num vamo estragar os uvidos com com seu lenga lenga, abardeiro do jeito que vamicê é e ainda por cima bêbo qui nem um gambá.

Expedito, já c’umas vinte meiota na cabeça, não se fez de suplicado e esbravejou: num vou tocar?!!! Toco e vai ser agora, vamicêis num s’esqueçam de qui eu tenho um jegue aí dentro da sanfona; como Zé Branco tem dois sacos de feijão, Zezinho uma porca e Zé Côco dois dias de trabalho e ainda tem os vinte litros de leite de Carlinhos de Astério.

Fez-se a confusão pelo toca num toca.

Acabou-se a festa….. todos a caminho de casa e a resenhar sobre as músicas, os passos dos dançantes, a insensatez de Expedito e o seu jegue dentro da sanfona.

Tonho do Paiaiá

Em, 11 de agosto de 2015

Marcos da Coelba – O homem, o profissional, o político, o amigo. Saudades!

Sim, sim: Marcos da Coelba, Marcos Barroca, Marcos Antonio de Souza Andrade são a mesma criatura, a mesma pessoa, FB_IMG_1488927379736o mesmo filho, o mesmo irmão, o mesmo esposo, o mesmo pai, o mesmo amigo, o mesmo servidor, na essência da palavra servir!

Como não lembrar de sua trajetória, desde ainda garotinho, lá no nosso Paiaiá; das idas e vindas em direção ao Variante, para alcançar a malhada de seu avô, Seo Né Gordurinha.

A malhada de Séo Né fica bem próxima daquele frondoso e centenário tamarineiro — tomado sempre como indicativo referencial para se chegar ao Povoado do Paiaiá ou utilizado para descanso e madornas daqueles, viajantes ou não, em estado de cansaço e necessitados de reposição de energias para uma nova lida ou seguimento de viagem.

Chorara ao ver aquele tamarineiro ser, odiosa e cruelmente, abatido sem que lhe fosse dado um minuto sequer de clemência. Como alguém pensar que uma árvore tão frondosa e frutífera pudesse esboçar o mínimo de perigo ou incômodo a quem quer que fosse.

Embora exercendo a vereança e representando seu torrão natal, se sentira incapaz de estancar a sanha destruidora de quem sequer respeita a mãe natureza, quiça a vida do povo daquele lugar.

No âmbito dos esportes fora um destemido zagueiro que enfrentava situações, das mais variadas e difíceis possíveis, Zagueirosem que se dispusesse a desbancar seus contendores com jogadas desleais ou que causassem contusões aos atacantes do escrete adversário. Jogava com elegância e seriedade e se portava como um gentleman dentro e fora Continuar lendo

Não acreditaram. Ele desafiou a todos e fez!

Transcorria, no Brasil, momentos de euforia. Haveria um sério e esperado teste na retomada da democracia, após vinte e sete anos sem eleições livres e diretas para Governadores de Unidades Federativas e Presidente da República.
Estavam credenciados para disputa, em segundo turno, dois nordestinos – ainda que um deles radicado no sul do país há mais de três ou quatro décadas.
O candidato de oposição ao poder do momento – considerado de esquerda – era um metalúrgico que, anos mais tarde, conseguira eleger-se Presidente da República.
O candidato apoiado pela situação – chamado de direita – um jovem de família política tradicional, que exercera o mandato de Governador no seu estado natal e conhecido pelas bravatas de palanques sob a denominação de “caça aos marajás”.
Exercendo mandato eletivo de vice-Prefeito, em um pequeno e agradável município do interior da Bahia, resolvi emprestar toda minha dedicação à convivência com os munícipes e o eleitorado, mesmo sendo servidor público na área fiscal da azienda estadual e cumprindo expediente, regularmente, na Inspetoria Fiscal da região.
Por força do envolvimento e da obrigação de mandato político, visitava a família, na Capital do Estado, em finais de semana e/ou quando de participação em audiências nas diversas secretarias de estado, em busca de serviços e obras para a população que correpresentava.
Em algumas datas específicas, como aniversários – natalícios ou bodas – primeira comunhão, festas escolares, também fazia questão de estar junto aos seus familiares participando da alegria deles, por óbvio.
Ano de 1989, proximidade de eleições em segundo turno, deixara de participar de comícios em prol do jovem caçador de marajás para celebrar aniversário natalício da sua esposa – desde quando se uniram em matrimônio nunca passaram aquela data longe um do outro; sempre estiveram juntos, reunidos com os filhos e outros familiares.
Cumprira expediente na lida fiscalizatória de tributos estaduais e no atendimento pessoal aos munícipes, como o fazia todos os dias, e, somente à tarde, empreendera viagem à Capital da Bahia para a celebração do aniversário da mulher que escolhera para ser mãe de seus filhos e sua companheira à eternidade.
Como natural em qualquer agente político com mandato eletivo, não podia viajar no momento que desejasse. Havia sempre um chamado para uma opinião, uma orientação, um apoio, uma resolução de problema. Dessa forma viajara já lá pela metade da tarde, chegando ao destino com a noite instalada.
Ao chegar em sua casa, encontrara sua esposa com a face manchada por lágrimas, porém com semblante de alegria. Como entender tal situação?! Como entender uma pessoa derramando lágrimas com semblante de alegria?! Perguntara a si próprio, silenciosamente: seria somente pela celebração do seu aniversário?!
Procurara se acercar da motivação daquele lacrimejamento impulsivo e prazeroso. Que está acontecendo aqui? O que houve pra você estar chorando?, se dirigira à esposa com ares de preocupação e medo de resposta não desejada, por certo.
A aniversariante, tomara de um pequenino maço de folhas de papel de caderno espiralado, não uniformes, perfurado na extremidade esquerda e acima, com alguma ferramenta pontiaguda e unido por frágeis pedaços de cordão (barbante), estendera sua mão e dissera: “olhe o que seu filho fez comigo!”
Mais que rápido, abelhudo e preocupado em saber do que se tratava, pegara aquele maço de folhas de caderno, folheara pausadamente, e, acreditem, as lágrimas também visitaram sua face sem lhe pedir licença nem lhe respeitar a condição de varão.
Aquele maço não continha mais que dez folhas de caderno. A primeira delas servia como capa e continha a seguinte inscrição: “Poesias da Vida”, em letras tortas, desenhadas ao gosto do “tipógrafo” de ocasião e a última como contracapa, sem qualquer inscrição. Tudo à moda de edição de um livro de verdade; era essa a intenção do escritor.
O “livro” continha poesias, todas manuscritas, algumas falando da vida, outras do amor, outras de sentimentos da pessoa humana. Não esquecera, o escritor, de dedicar uma delas – poesias – ao cão poodle da família, que havia morrido há pouco tempo, chamado Veludo.
Após detida leitura daquele “livro”, com esmerado cuidado para não manchá-lo com o rio de lágrimas que lhe lavava o seu rosto, respirara fundo e chamara para perto de si o “poeta-escritor”.
Meu filho, foi você que fez isto mesmo? Você já ouviu falar em plágio? Um renomado cantor brasileiro está respondendo na Justiça pois um compositor afirmara ser dele uma das músicas do disco lançado pelo cantor e que fizera um sucesso de arrebentar.
O “poeta-escritor” sentindo-se desprestigiado e acusado não sabia lá de quê, demonstrara tamanha irritação a ponto de proferir um palavrão: “porra, ninguém acredita em mim…!” e ameaçara se retirar do recinto onde estávamos todos.
Aquele desabafo viera por conta da homenageada pelo “livro” também lhe ter feito a mesma pergunta, ainda que não tenha sido tão incisiva quanto a minha.
Minha atitude, naquele instante, fora de recuar e mudar o rumo da conversa. Era momento de acreditar naquela criança que, com pureza d’alma, produzira aquele “livro” para presentear sua mãe. Havia o risco de desencorajar aquele menino de pouco mais de dez anos, a completar nova idade dali mais trinta dias.
Dali em diante fora só alegria, beijos, afagos, celebrações, choros, risos, comentários, orgulho à flor da pele – dos seus pais, claro!
Agendado, com familiares, comadres e amigos um jantar num restaurante famoso da Capital, para lá se dirigiram todos. Não cessavam os comentários, a alegria, o choro, a satisfação e o orgulho, as apostas no futuro daquele escritor-mirim.
Bebidas à mesa, comentários eufóricos e orgulhosos; faces rubras em profunda surpresa; alegria irradiando o ambiente, a ponto de os comensais esqueceram a verdadeira homenageada – a aniversariante. O centro das atenções era o menino “escritor-poeta” que acabara de se revelar como tal.
A celebração, daquele momento em diante, era de conhecermos do que era capaz o “escritor-poeta”.
Mais uma pergunta surgira sobre a verdadeira feitura do “livro” e mais uma demonstração de grande irritação fora esboçada. O “escritor-poeta” não admitia, sob nenhuma forma, que duvidassem dele e da sua capacidade.
Pratos pedidos, bebidas servidas e sorvidas, conversa acalorada de alegria e orgulho. Tudo indo na maior satisfação; na maior algazarra civilizada, mas as lágrimas, agora de alegria, atingira a todos, não se afastaram daquele ambiente; eram visivelmente notadas por quem ali chegasse.
Chegara ao restaurante um amigo da família, médico de grande competência e, por sinal, amigo do “escritor”; gostava daquele menino, brincava com ele. Mas achara estranho o semblante de nós todos e não se conteve em perguntar: “por que as lágrimas ?”
Contado o episódio do “livro” Poesias da Vida e ele se interessara em folheá-lo. Finda sua leitura, se dirigira ao “escritor-poeta” com a clássica pergunta, antes por este ouvida, mais de uma vez.
Aquele menino, ainda a completar onze anos dali mais trinta dias, mais uma vez irritado, proferira o desabafo: “porra, ninguém acredita em mim….” e, levantando-se da cadeira, chamara o maitre e lhe diz: o senhor me consegue papel e uma caneta?
Virara-se para o médico amigo – após ter recebido o papel que desejara e ter tomado da minha caneta Parker 51 que carregava no bolso da camisa – e dissera, em flagrante desafio: diga o tema.
O médico, naquele momento sentindo-se enamorado de uma bela senhorinha, lhe diz: “ … arranjei uma garota nova e parece que estou apaixonado…”
O menino lhe respondera: basta.
E, escondendo o papel com uma das mãos, em posição de ângulo côncavo, passara a escrever, à vista de todos.
Ao final da escrita e após apor sua assinatura, dirigira-se ao médico e lhe perguntara: “ como é o nome dela?”
Recebida a resposta do nome da senhorinha, escreve ao lado: “para os meus amigos Larissa e Nika”.
Fizera a entrega do escrito ao seu pai e dissera: “leia, pode ler” como a passar uma reprimenda a todos que não acreditaram ser ele capaz de ser “escritor-poeta”.
O que foi produzido, naquela mesa de restaurante, à vista de todos e em desafio, está no fac-símile que compõe este texto – é uma poesia que diz do amor!

Fac símile

 poesiadetoni-inscrito

Tonho do Paiaiá
Revivendo um certo 14 de outubro e comemorando um 13 de novembro, aniversário do protagonista desta crônica.

Paiaiá, um sertão com enchentes. Enchentes de cultura; cultura “a mancheia”!

Há alguns dias, o Carlos Sílvio – um paiaiaense que faz história na cidade de São Paulo, quer no esporte quer na comunicação – Carlos Silviome tangeu uma provocação, para – palavras dele – escrever um pequeno texto, mas não mais que quinze a vinte linhas.

Era, dele, desejo de fazer leitura no programa da Rádio Conectados, onde ele brilha com intensidade, entrevistando personalidades da televisão, como o Régis Tadeu; da música – a exemplo de Carleba Castro, baiano como nós, baterista do inesquecível Raul Seixas, o “maluco beleza” e do nosso paiaiense festejado, o Penna Seixas e, por último, do Jorge Di Areal – com participação dos meus amigos Darlan Zurc (Darlan de Albino da Melancia)paiaia na conectados] e Pedro Cardoso da Costa; do jornalismo voltado ao esporte, a exemplo do Diego Viñas – grande responsável pelo crescimento do Carlos, tanto no esporte como na comunicação – ; da cultura, como Cláudia Isadora; da área jurídica como o Advogado Jamil Hassan e tantos outros de outras áreas.

Assim o fiz, mas somente até o penúltimo parágrafo do que fora publicado na rede social facebook, pois o parágrafo final ficara a seu cargo, como acertado, dado que diria sobre a participação internacional da Biblioteca do Paiaiá em evento no Canadá, próximo mês de outubro do ano corrente.

Falar ou escrever sobre o Paiaiá, pra mim, nunca foi difícil. Aliás é, em si mesmo, prazeroso e dignificante. Daí ter aceito o “desafio” deste conterrâneo e amigo.

Somos uma pequena povoação, no município de Nova Soure, Estado da Bahia, paiaia- geralcom características climáticas próprias do semiárido nordestino que, embora conviva com sérias dificuldades por escassez de chuvas, é protagonista de inundação; mas inundação cultural, o que a torna conhecida no mundo inteiro.

Denominação oriunda de um povo indígena – os Payayás – considerado desaparecido, que vivera nas terras de Jacobina, Bahia, onde nasce o rio Itapicuru, lá pelos idos do século XVI.

Já no século XX sua denominação fora alterada para São José do Paiaiá – mas nós, todos nós filhos daquela abençoada, terra o chamamos simples e carinhosamente Paiaiá. Um povoado com cerca de 600 habitantes residentes e uma enorme população flutuante.

Mas, por que enchentes de cultura?

Simples deduzir.livro de moliere

No povoado tem instalada, funcionando normalmente, a Biblioteca Maria das Neves Prado ou simplesmente Biblioteca do Paiaiá, (http://bibliotecadepaiaia.blogspot.com.br/ https://pt-br.facebook.com/biblioteca.dopaiaia) contando com um acervo de mais de 120 mil livros, mídias, etc., além de promover cursos, encontros culturais, mostras e outros tantos eventos, a exemplo da palestra proferida pelo imortal Antônio Torres (http://www.antoniotorres.com.br) nosso quase conterrâneo, em dezembro de 2014.

Explicada, pois, as enchentes – não de correntezas de águas dos rios, riachos ou chuvas, mas de cultura, cultura “a mancheia” – buscando arrimo na sábia frase do Poeta dos Escravos, Castro Alves “Oh! bendito o que semeia Livros, livros, à mancheia E manda o povo pensar.” –  cultura riquíssima e acessível, semeada por nosso Geraldo Prado e sempre à disposição de quem desejar visitar aquele Povoado e sua Biblioteca.Paiaia x Canada

No mês de outubro vindouro, a Biblioteca do Paiaiá, criada pelo professor doutor Geraldo Moreira Prado, será apresentada, virtualmente, sob a tutela do Museu da Pessoa, de São Paulo, no Encontro Internacional, a ocorrer em Montreal, no Canadá.

Tonho do Paiaiá

Compartilhando a alegria de escrever.
  • Salvador, 27 de agosto 2016

Chute o pênalti, seo minino. Mas chute ao contrário, viu!

______Publicar

Estamos em época festiva do esporte mundial – o Rio de Janeiro sedia os Jogos Olímpicos, completando, na Era Moderna, 120 anos desde quando se fizera iniciar em Atenas, na Grécia.

Sabe-se que o propósito desses Jogos Olímpicos ou Olimpíadas é reunir a maior quantidade possível de Nações e de seus atletas, para demonstração de habilidades, força, estratégias e superação do homem pelo próprio homem nas suas possibilidades e realidades físicas.

Tudo indo dentro da normalidade desejada e prevista – sempre ao alcance dos anfitriões e organizadores. Deixando de lado, óbvio, o descontentamento do francês que alegara uso de macumba (no sertão é feitiço), por parte do nosso atleta da modalidade salto com vara, para ganho da medalha de ouro.

Mas, tomando como mote esses jogos olímpicos, me viera à lembrança de jogos outros, não com organização milionária como a de hoje em dia, mas sempre no propósito de congraçamento entre as pessoas – atletas ou não – em pequenas cidades ou localidades do nosso sertão baiano.

Aos domingos havia sempre um evento esportivo: ora corrida de cavalos – ainda não existiam vaquejadas como as de hoje; no máximo uma pega de gado, travada sempre durante a semana e, normalmente, como adjutório a um determinado criador de gado na caatinga – e, na maioria das vezes, partidas de futebol – jogo de bola como conhecido na época a que vou me reportar.

Às vezes a peleja era entre dois times do mesmo município ou cidade ou povoados; às vezes entre um time do povoado e outro da cidade e, outras vezes, entre times ou seleções de municípios – notadamente os vizinhos.

Era sempre um momento festivo. O deslocamento em carrocerias de caminhões, em basculante de caçambas, em bicicletas ou montados em vistosos cavalos, jegues ou burros e mulas (muares) era o normal naquela época.

Quem tinha seu belo e habilidoso animal de montaria se vangloriava e dava-se ao prazer de mostrar aos demais suas qualidades e habilidades. Algumas vezes até pegando parelha para ver qual pisava melhor em legítima marcha picada.

Pois bem, em conversa com um amigo a quem prezo muito, Wanderlei – professor de física da Universidade Federal da Bahia, já aposentado – tocamos a lembrar de feitos, façanhas e acontecimentos ocorridos no nosso sertão, lá em décadas distantes, alguns folclóricos, outros não, mas sempre com protagonistas do conhecimento dos dois amigos, converseiros dos domingos.

Somos nascidos em municípios bem próximos e com os mesmos aspectos climáticos, econômicos e culturais.

Da conversa surgira um episódio ocorrido no Município de Ribeira do Amparo, no nordeste baiano, quando de uma partida de jogo de bola (futebol) entre os times da Cidade e o de um Povoado do mesmo município, denominado Boa Hora.

Jogo marcado para um domingo qualquer, no final da década de 50, início da de 60 do século passado. O campo escolhido ou sorteado, não se tem notícia certa, fora o da Boa Hora.

Prevista uma festança, como era de se esperar.

Alugaram a empanada do Circo de Sopapo – um palhaço engraçado e dono do circo do mesmo nome – que estava armado numa das praças de Nova Soure, para cercar o campo com a finalidade de cobrar ingresso a quem quisesse assistir ao jogo.

Tudo dentro da normalidade; uma festança de respeito. Bandas de pífanos do Soure, de Cipó e da Ribeira, se revezavam em tocatas e dobrados desafiadores e animadores. Sanfoneiros e seus acompanhantes – zabumbeiro, pandeirista e triângulista se encontravam debaixo d’um pé de cajarana, enorme e frondosa, que ficava no centro da praça da localidade, tocando músicas da época, notadamente as do véio Lua, rei do baião – naqueles tempos não se falava no tal do trio elétrico fora da época do carnaval, até mesmo pelo fato dele ser ainda novidade, uma mera fubica com uns músicos tocando em cima, como se dizia.

Na bodega de Zé de Mané Danta estavam Manezinho de Juvêncio (conhecido como Manezinho Guarda) solando no seu cavaquinho; Nelito de Abdon, em sopro clássico na sua clarineta e Dantas (irmão de D Risol de Joel fiscal), dedilhando o seu violão de marcação, executando chorinhos e boleros e samba-canção, encantando aos nativos ou visitantes.

Os moradores do povoado enfeitaram suas casas com bandeirolas; as moçoilas se vestiram finamente com peças dos seus melhores guardas roupas. Os varões ostentando a casimira ou tropical inglês na cor branca — da melhor qualidade, a S129 — alguns em finos ternos outros em roupa completa – calça e camisão em mangas compridas e avantajados bolsos frontais um à altura do peito esquerdo e dois outros bem abaixo, já emparelhados ao cós das calças; outros, ainda, em roupas bem costuradas em tecido de mescla azul (mesclinha fabricado na Tecelagem Santa Helena do Rio de Janeiro), vendido na Loja de Chico do Adir, em Cipó.

Era chegado o momento da peleja.  Havia de serem providenciados: a marcação do campo a cal e a escolha de um juiz para apitar partida. O fechamento do campo, com a empanada, já estava resolvido,

Contrataram um juiz de futebol (árbitro) experiente da cidade de Ribeira do Pombal. Homem sério e respeitado, altura na casa de um metro e noventa centímetros e apelidado Tota Berro Grosso. Não dava lugar a que lhe pusessem dúvidas sobre o que apitava e apontava – ainda não se falava em cartões amarelo e vermelho, era tudo na base da bronca mesmo; o juiz passava uma carraspana no jogador desleal, dava-lhe uma nova oportunidade. Se tornasse a outra, botava pra fora de campo, expulsava-o do jogo e, ai daquele que resistisse em sair; nem precisava chamar a polícia, Berro Grosso mesmo o retirava, puxando-o pelo braço, e pronto.

Os dois times em campo, perfilados ao lado do Juiz – bandeirinhas não existiam naqueles tempos; o juiz era sozinho e soberano.

Discursos, do Prefeito de então e de um Vereador que representava aquele povoado, clamavam pela civilidade e respeito entre os jogadores e lembravam que o jogo era entre irmãos do mesmo município, não havia porquê se estranharem numa ou noutra jogada, por mais ríspida que fosse, afinal fazia parte do jogo.

Pontapé incial a cargo do Padre Emílio, que viera de Pombal para tal mister. Jogo começado. As torcidas se postaram uma em cada lado do campo para que não houvesse estranhamento entre um ou outro desavisado.

De início se depararam com um aparente impasse. Dois jogadores da Boa Hora não tinham chuteiras e iam jogar descalço. Berro Grosso não queria consentir; estava fora das regras do jogo. Discussões acaloradas: joga num joga; suspende a partida; manda Carlito de Toizinho, na sua Rural Willys, em Cipó pra tomar emprestado dois pares de chuteira. Houvera toda espécie de sugestão.

Mas, nada como contar com um pacificador. Alfredo Souza Cruz, professor leigo da localidade, homem cordato, intervira na discussão e argumentara: seo juiz, cancelar a partida não dá, né mesmo minha gente?! – como vamos devolver o dinheiro de quem pagou a entrada? Mandar ir buscar chuteiras em Cipó vai demorar muito, vai escurecer e fica ruim para jogar. Proponho o seguinte: tira as chuteiras de dois jogadores da Ribeira e, aí, fica tudo equilibrado. Ninguém fica melhor que ninguém.

Consultados os responsáveis pelos times, proposta aceita. Reiniciado o jogo.

Tudo corria normalmente: uma jogada de dribles daqui; um desarme dali; um off side dacolá, mas o povo chamava mesmo era banheira: “seo juiz o meia esquerda deles tá na banheira, né pussive qui o sinhô num vá marcar”.

“Seo juiz, o sinhô tá cego é?! Num tá vendo que Zé de Marcolina deu uma bruta do tamanho do Hotel de Cipó em Chico do Foguete, não?!” E Berro Grosso, no seu natural, vociferava: esse minino vamicê s’aquiete mode eu num lhe botar pra fora. A otoridade aqui sou eu e quem marca bruta, mão, offissaide, saída de bola, corner, imprensada, sou eu viu?! Num tem essa de jogador marcar no lugar do juiz não.

Descanso de retorno para o segundo tempo do jogo que ainda apresentava placar sem gols. Não houvera substituições. Nenhum jogador se declarara cansado e não houvera necessidade de tirá-lo de campo pra botar outro e nem mesmo nenhum jogador queria sair.

Lá por volta dos quarenta e dois minutos do segundo tempo, o center four (centro avante) da Ribeira driblara o center ralph (beque central) da Boa Hora, e, já dentro da grande área o ralph esquerdo veio à toda e pimba: derrubara o atacante.

O juiz, implacável na marcação, embora um pouco distante de jogada, soprara o apito em alto e bom som, correndo e apontando para a marca do pênalti, feita a cal. Mas, para demonstrar a integridade que alardeava, conferiu se a marca estava mesmo com onze passos até chegar à linha do gol. Suas passadas eram longas e deu uma diferença de meio palmo pra menos, mas ele relevou.

“Foi pênalti”. “Num foi”. “Seo juiz, o cabra se jogou mesmo antes do ralph chegar perto dele. Tá mermo é querendo criar confusão num jogo tão bom e amigueiro que foi jogado até aqui”.

Pronto, instalada a desavença, haveria de ser encontrado um desfecho que não desagradasse os anfitriões e não deixasse os visitantes em desvantagem; afinal aquele era um jogo entre irmãos do mesmo município, não cabia terminar em confusão.

“Bate”.“Num bate”: diziam os capitães dos dois times.

Nestes meus mais de trinta anos que apito jogo de bola nunca marquei um pênalti pra num ser chutado. E né aqui na Boa Hora que vão me desfeitear, vociferava Berro Grosso.

Um torcedor ouvindo aquilo tudo – dizem que foi Zezé de Sinhazinha (José Brasil) – lembrou que lá fora do campo, montando seu vistoso cavalo manga larga marchador, castanho cacete, quase oito palmos de altura, estava um filho da Boa Hora, próspero fazendeiro e negociante de porcos em Alagoinhas, conhecido como Chico Pança, muito querido e respeitado na localidade e, dificilmente contestado por quem quer que fosse. Na verdade era um benfeitor, um formador de opinião.

Zezé, d’um fôlego só e esbaforido de tanto correr, alcança a bodega de Zé de Mané Danta e dissera: “chega seo Chico Pança, tão querendo brigar lá no campo por causa dum tal de pênalti e o juiz tá lá soprando qui nem cavalo brabo quando da pega pela primeira vez pra botar a sela. Acho que a coisa vai terminar em briga feia se o sinhô num for lá resolver isso”.

Chico Pança, embora de estatura mediana, não mais que um metro e sessenta de altura e de compleição avantajada, montou seu cavalo d’um só pulo. Ostentava na cintura um shimidt wesson 38 cano longo – na época era permitido o porte, desde que contasse com o registro nos órgãos de controle de segurança pública – um chapéu em couro de carneiro — com as abas quebradas ao seu gosto — vindo lá do Monte Santo, uma vara de pau ferro para açoitar o cavalo e botas de cano longo até quase engolindo os joelhos.

Adentrou o campo de bola, montado mesmo, e riscou seu ginete na pequena área, também marcada a cal. Levantara poeira pra todo lado, contudo sem tocar, de leve que fosse, em qualquer pessoa; era um cavaleiro experimentado e homem respeitador.

“Qui é isso ai mininos? Qui tá aconteceno aqui? Vamicês tudo gente grande, pais de famía, tão querendo brigar por uma besteira dessa?”

Seo Chico Pança, dissera Nicolau da Tapera, goal keeper (goleiro) do time da Boa Hora: este sujeito da Ribeira se jogou na área sem ninguém tocar num fio de cabelo dele. O táli do juiz, lá de longe, cansado, sem enxergar direito pur causa do sol, marcou um táli de onze passo contra nóis. Desse jeito, se chutar vai ser gol na certa.

De lá vem Berro Grosso e, sem saber com quem estava falando, se dirige ao cavaleiro: o sinhô tá fazendo o que aqui dentro do meu campo com este pangaré? Tá qui nem aquele povo do estrangeiro querendo jogar bola montado nos cavalos, tudo lalaiando pra riba e pra baixo, batendo na coitada com um pedaço de pau? Vamicê já ouviu falar em Tota Berro Grosso, do Pombal? Sou eu aqui, seu criado, viu?! Nunca marquei um pênalti pra num chutarem. Não é o sinhô que vai mudar minha história aqui nesse fim de mundo não, tá me entendendo?

Todos ficaram apreensivos com a ousadia de Berro Grosso, mas Chico Pança não dera ouvidos às bravatas do juiz.

Chamara a si a responsabilidade de resolver a situação e o faria, com certeza.

“Vamicês dois, chamando os capitães dos times para perto do seu cavalo, querem resolver mesmo?”

E o capitão da Ribeira: seo Chico Pança o ralph de vocês deu uma bruta da gota em Dudu de Antonio Félix que ele se estatalou quase em cima do goleiro. Foi onze passo mesmo. A gente tem o direito de chutar.

E Chico Pança: mininos, num vim aqui para conversa mole não, viu?! Quero resolver isso sem ter que me chatear e vou resolver agora.

É para chutar, né?! E aí já se dirigira ao juiz. E este, se achando autoridade, diz: claro; se eu marquei é pra chutar mesmo.

Pronto, minha gente, dissera Chico Pança, então tá tudo resolvido.

Quem é que vai chutar esta bola? Me apareça logo. Tenho mais o que fazer. Vou escutar chorinho, bolero e samba-canção lá na bodega de Zé de Mané Danta pra matar a saudade dos amigos, que num vejo faz muito tempo.

“Sou eu seo Chico Pança”, se apresentara Dudu de Antonio Félix.

Então chegue minino, chegue pra cá. Chute logo sua bola.

Chute com toda a força e sabedoria que vamicê tem no jogo de bola; mas chute ao contrário, viu!

Bola chutada em direção contrária ao gol da Ribeira e não ao da Boa Hora.

Jogo terminado sem gols, sem vencedor.

Todos em alegria; a festança continuou noite adentro, até madrugada alta, sem qualquer outro incidente.

Tonho do Paiaiá
Relatos de “olimpíadas” no sertão – revivendo o passado
Salvador 18 de agosto de 2016

 

A motocicleta, o carona, o perdão, uma amizade duradoura!

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Estávamos n’uma época de fartura de pastagens. O inverno tinha sido dos melhores e era momento de rotacionar o rebanho nos pastos para melhor aproveitamento da comida.

O gado de Seo Vicente – Vicente da Cajuba, meu dileto e saudoso compadre – ficava distribuído, normalmente, nas três fazendas: a Sacambira, no município de Tucano (esta fazenda pertecera, no passado, ao Seo Dedé de Mário, dono do principal Posto de Gasolina de Nova Soure); a Santo Antonio (pertencera a Seo Ataíde, esposo de Dona Belinha da Pensão; coincidentemente hoje a mim pertence, adquirida diretamente do meu compadre) e no complexo da Baixa do Cardoso, situado parte no município de Cipó e parte no de Nova Soure.

As terras da Sacambira e da Santo Antonio contavam com pastagens de fina qualidade – geralmente capim pangola – digitaria decumbens – nomes comuns: Transvala (Brasil), Capim pangola – pangolinha, como é mais conhecido em nossa região, além de muitas leguminosas palatáveis e desejadas pelo rebanho.

Para cuidar daquele rebanho, a pessoa escolhida por Seo Vicente fora Seo Aririta, nascido e batizado nas terras da Lagoa, no Município do Inhambupe, com o nome de Antonio José — vaqueiro experimentado e extremamente dedicado ao ofício. Necessário frisar que a escolha fora em virtude dos laços de amizade e demorada convivência na antiga Fazenda Gavião, produtora de frutos — principalmente os cítricos – no município de Entre Rios.

Bem, Aririta era a pessoa que eventualmente cuidava da movimentação do rebanho bovino de Seo Vicente da Cajuba. Ora trazendo o gado da Sacambira para o complexo Baixa do Cardoso; ora deste para a Santo Antonio e vice-versa; sempre rotacionando os animais para o melhor pastoreio, aplicando esta administração pecuária com maestria e dedicação invejáveis.

Por vezes, quando Seo Zé, trabalhador de Seo Vicente, não podia lhe auxiliar na transferência daquele rebanho, Aririta se valia da contratação de Zé Preto de Gutinha – vaqueiro de escol, amansador de bravos, respeitado pela sua habilidade em tomar de um potro ou uma mula, ainda crus, e entrega-los aos seus donos com rédea invejável e obediência singular para montaria, fosse qual fosse o montador, experiente ou não.

Aririta era sempre o comandante da movimentação pecuária.

Mas, o Zé Preto de Gutinha tinha seu lugar: era verdadeiramente respeitado e escutado no planejamento da movimentação do rebanho e nas ações a serem adotadas durante o trajeto entre as diversas fazendas de Seo Vicente.

Neste episódio, Aririta fora instado a transferir trinta e cinco garrotes —todos cuiudos, com idade média de três anos, peso aproximado de catorze arrobas — da Fazenda Sacambira para a Santo Antonio; nesta o pangola estava viçando e era momento de jogar o gado naquela capineira para só tirar de lá diretamente para o abatedouro.

Empreita acertada com Seo Vicente. As montarias já estavam na Sacambira, Seo Zé as levara um cavalo e uma mula. Restava aos vaqueiros cuidarem dos arreios, da indumentária característica aplicada à ocasião, do aió com o feijão, farinha e carne assada para comerem na viagem – haviam de cortar alguns tabuleiros afora, após a passagem do rio Itapicuru na divisa entre os municípios de Tucano e Cipó, até alcançarem o destino final: a Santo Antonio.

Seo Vicente, como tinha que laborar no dia seguinte, na velha, cantada, prosaeada e redentora Cajuba, preferira levar os dois profissionais vaqueiristas no dia anterior, para, dormindo na Sacambira, saírem ainda na madruga – melhor horário para se tocar gado – com o rebanho destinado a fazenda Santo Antonio.

Viagem sem maiores percalços: cruzaram o rio, venceram o tabuleiro do Mocó, adentraram as terras das Pedrinhas de Zé Ramos, venceram o riacho Natuba e apontaram na direção da Santo Antonio.

A viagem até ali não fora lá tão fácil assim. Labutar com boi cuiudo não é coisa para amadores. São birrentos, brigam entre si, empurram uns aos outros – próprio dessa classe de bovinos.

Viagem indo dentro do planejado, mapeado e desejado pelos dois vaqueiros. Zé Preto, mesmo incomodado com algumas atitudes adotadas por Aririta, convivera em harmonia com este naquela empreitada.

Sabiam que, após rumarem no sentido direto da Santo Antonio, iriam encontrar estrada de asfalto, corredores — as vezes largos, as vezes estreitos — cercas boas e cercas sofríveis; caminhos retos e tortuosos.

Não deu outra, leitores!

Os bois, ao passarem em frente ao curral da matança – nome comum dado a Matadouros Municipais – como que a adivinharem que um belo dia havia de para ali voltarem em viagem final, começaram a criar problemas para seguirem em frente.

O trabalho dos vaqueiros dobrara a partir dali. Briga dali, briga daqui, briga d´acolá; refuga daqui, refuga d’acolá e os profissionais tocando o gado – “tão pensando que são mais de que nóis; num são não seus mequetrefes; vamiceis tão sendo tocados pur dois homi de verdade; vamiceis chega lá pur bem ou pur má”, bradava a todos pulmões Zé Preto de Gutinha.

Lá pelas tantas, emparelhando com as terras da fazenda Siscalha, de propriedade de Seo Zé Moreira ou José Moreira da Silva Filho. Como o próprio nome denuncia, filho de José Moreira da Silva, o Capitâo Cazé — embora civil, possuidor deste título designativo, obtido pela nobreza ostentada; é próprio da época — proprietário da Fazenda Cruz, um dos últimos bastiões de preservação da história da nossa terra (a casa da fazenda, de existência sesquicentenária ou mais, é tomada como fiel testemunha de tal preservação), a boiada resolvera demonstrar sua insatisfação, sua pretensa força frente aos vaqueiros.

Os animais, tocados por aqueles dois “doutores de vaqueirama”, começaram uma rixa bovina desenfreada; sem limites, sem precedentes. Os dois vaqueiros se assustaram, mas não frequejaram.

Resultado da insubordinação bovina: derrubaram umas trinta braças de cerca da fazenda Siscalha, invadiram a propriedade alheia, deram um imenso trabalho aos vaqueiros para retornarem com eles aos corredores que davam até a Santo Antonio.

Era preciso chegar ao destino planejado para aquela boiada. Não havia tempo para consertar as cercas da fazenda de Seo Zé Moreira. Ficaria p’ra depois, se fosse o caso. Ou, então, Seo Vicente que se houvesse lá com o dono da Siscalha e acertasse como resolver o estrago, não cabia a eles, naquele momento, cuidar da solução requerida para o caso; o objetivo era entregar a boiada na Santo Antonio, para o pastoreio que fora designado.

Dia seguinte, Seo Zé Moreira visitando suas fazendas – como fazia regularmente – se deparara com o estrago que os bois fizera à cerca da Sicalha.

Pesquisa daqui, pesquisa dali, fora informado de que Aririta passara com uma boiada, ali no pé da sua cerca, no dia anterior.

Pronto. Descoberto o responsável pela ocorrido, Seo Zé Moreira aguardara ser procurado por Aririta – não conhecia a pessoa, mas fora informado de quem se tratava e de quem era o gado – ou que este providenciasse o reparo da cerca o que, obviamente, não ocorrera.

Se Aririta não tivera competência para dar côbo ao gado que levava, era problema dele. Mas, a cerca da Siscalha não podia ficar, daquela forma, ao chão e abandonada. Era preciso que o responsável por aquela situação reparasse o ocorrido.

Aririta, com outra ocupações que não a da lida com gado, não dera muita importância ao ocorrido – não por falta de responsabilidade, mas pelas obrigações de cuidar das empreitas na Fazenda Cajuba e atender aos seu contratante.

Mas, Seo Zé Moreira não aceitava e nem aceitou aquela atitude, até que lhe fosse explicado o acontecido. Não ficaria refém de quem quer que fosse. Aquela fazenda “tinha dono” como fazia questão de dizer, e não iria ficar ao aberto – tinha consciência de que aquilo era normal na lida com gado – qualquer um estaria sujeito a uma situação como aquela que se lhe apresentara.

Chamou Chico de Quinta – seu fiel trabalhador, ainda desde os tempos do Capitão Cazé – e mandou que fosse reparada a cerca da Siscalha. Afinal a roça era sua e o gado da sua propriedade corria o risco de tomar o corredor e ir bater lá na Cruz, no São Pedro, no Carrapato ou na Barra, todas fazendas de sua propriedade e onde aquele gado tinha costume de pastorear.

Aririta, possuidor de uma motocicleta, corria as roças de Seo Vicente para lhe dar notícias de como estavam os animais que foram trazidos da Sacambira e os que estivessem em hotelaria n’outras fazendas do criador.

Pois bem, o tempo passou; a vida passou e tudo seguiu normalmente dentro dos limites da civilidade e dos costumes do lugar.

Lá um belo dia, Seo Zé Moreira – no seu Jeep Willys Overland do Brasil, modelo 1964 e em estado original de conservação, se dirigira à Fazenda Siscalha com a finalidade de olhar o seu rebanho, correr as cercas e anotar as necessidades daquela propriedade rural.

Ocorre que, aquele veículo já quase cinquentenário, não era o mesmo de quando chegara a Nova Soure, com vigor incomparável e valia impensável. Não deu outra: enguiçara a ponto de não sair do lugar, mesmo depois dos empurrões que lhe foram dados pelos solidários que por ali passavam.

Desânimo, depois de levar o Wllys Overland  – p’ra frente e p’ra trás –, nada daquele Jeep querer pegar e seguir viagem.

Todos desolados, à beira da cerca da Siscalha, esperando um socorro – naquele tempo não contávamos com o difundidíssimo aparelho celular para chamar um reboque ou um mecânico.

Seo Zé Moreira já tinha pensamento formado. “ Vou procurar Tonho de Mamédia, foi ele quem calibrou o carburador deste carro, ainda ontem, e, depois disso, a primeira viagem que fiz foi esta. Ele vai ter de dar um jeito no que fez e me entregar o Jeep funcionando como chegou lá na oficina dele”.

Não demorara muito, aponta um motoqueiro vindo das bandas da Santo Antonio. Era o Aririta, o vaqueiro, o causador da derrubada da cerca da Siscalha.

O vaqueiro-motoqueiro, vendo aquele adjunto, começara a acionar os freios da sua motocicleta. Sabe-se que uma motocicleta não tem frenagem muita boa: risca mais do que estanca.

Moto parada, descera e passou a cumprimentar os presentes: bom dia meus senhores; o que houve? Posso ajudar em alguma coisa?

De lá acorrera Zé Agasaio (na verdade Zé Agasalho, mas como a pronúncia é do protagonista, decidi preservá-la): o Jeep de Seo Zé Moreira inguiçou aqui, já levamo umas quarenta braças pra frente e prá trás e nada no bixiguento pegar. Tamo aqui com as apás (omoplatas) em pitição de miséra.

Claro que Aririta conhecia Seo Zé Moreira – de vista ou por ouvir falar, sabia que ele era o pai de Roberto Moreira – Seo Zé Moreira é que, mesmo conhecendo aquele vaqueiro de vista, não sabia o seu nome.

Aririta, solícito e dirigindo a palavra a Seo Zé Moreira, diz: se o sinhô quisé eu lhe levo pra rua e lá o sinhô procura um socorro melhor; pelo menos sai daqui deste deserto qui a gente num sabe que hora passa um carro.

Seo Zé Moreira, ainda sem saber com quem falava, respondera: nunca montei numa moto e não é na sua que vou montar.

Zé Agasaio, parte em socorro àquele diálogo e assevera: pode ir Seo Zé, Aririta é uma pessoa responsável e só anda devagar na moto dele.

Pois bem, estava desvendado o mistério. Seo Zé Moreira, então agradecido e agora conhecedor da pessoa que causara estrago nas cercas da Sicalha, aproveitara o momento para cumprimentar melhor o protagonista daquilo tudo: então é o senhor que é o Aririta, né?!.

Aririta, incontinenti, apresentara sua resposta: sou eu mesmo!

Carona aceita, viagem empreendida com extremo cuidado, chegado ao destino pretendido por Seo Zé Moreira que, após apiar da moto se dirige ao socorrista: quanto lhe devo?

Oxente Seo Zé, nada não. Intonse o sinhô acha que vou lhe cobrar por uma besteira dessas?, diz Aririta.

Não senhor, esta moto não é minha, sei que lhe custou dinheiro, sei que gasolina tá pela hora da morte; minha obrigação é lhe pagar.

A recusa permanecera e os agradecimentos foram apresentados. Seo Zé Moreira sequer tocara no assunto das cercas derrubadas. Aquilo tudo acabara de ser esquecido; deixado pra lá, como dizemos no nosso sertão.

A partir daquele momento nasce uma amizade, firma e duradoura.

Não sei o desfecho do conserto mecânico do Jeep, tampouco importa a esta crônica.

Soube, depois, que um belo dia os dois novos amigos pararam no posto de gasolina para abastecimento dos seus veículos. Estavam, ambos, indo para as fazendas, cada qual no seu mister.

Após serem atendidos, saíram do ambiente das bombas de combustíveis e começaram a conversar. Papo gentil, sobre a esperança do inverno, plantio de lavoura e capim, sobre pastagens, preço da arroba de boi, cavalos de montaria e de tração.

Conversaram sobre tudo. Mas sobre o episódio da derrubada da cerca pelos bois nem uma palavra sequer. Afinal aquilo fora superado pela gentileza da carona há várias semanas. Dali em diante valia, como valera, a amizade estabelecida entre os novos amigos.

Aconteceu que o papo estava muito bom. Conversaram e esqueceram dos afazeres e também dos relógios: deu meio dia – o sino da Matriz de Nossa Senhora da Conceição tocara as 12 badaladas, era o ritual da época – e os conversantes ali num bate papo proveitoso e interessante, até que o sino da Matriz soou as 6 badaladas da Hora da Ave Maria.

Não lembraram sequer de almoçar ou beber uma água, nada disso; o que importava mesmo era o bate papo, a confirmação de uma nova amizade.

Cairam em si: vixe Maria! Já é a hora das Ave Maria, vamos embora, vamos embora. Até outra hora; depois a gente termina esta conversa, haverá tempo, dissera um ao outro.

E a amizade permanecera até quando Seo Zé Moreira fora vivente nesta terra.

Tonho do Paiaiá.

Dia de Santo Antonio do ano de 2016, relembrando um amigo e homenageando um Antonio — o Aririta.

 

O centenário de Guilherme Dantas Bastos – “Pai Brito”

Pai Brito

Neste maio do ano corrente (2016) completaria um século de vida, se antes não tivesse sido chamado, pelo Pai Celestial, para uma nova caminhada e nova missão, Guilherme Dantas Bastos, meu saudoso pai.

Havia muitas formas de lhe nominarem: Seo Brito, Brito Guarda do Paiaiá, Brito Guarda, Britinho de Cipó.

Nós, filhos, sempre o tratamos Pai Brito. Mas, considerando o linguajar de crianças em formação e/ou alfabetização, chamávamos-lhe “Pai Bito

Nascido nas terras do Rio Quente, município de Ribeira do Amparo, mas criado em Cipó, por ser uma cidade com maiores condições de educação na época.

Era um bom irmão e querido por todos eles, mesmo sendo um dos caçulas da minha avó Sinharinha (Ana Ferreira de Brito Bastos) e meu avô Gilberto de Almeida Bastos. Ele era o penúltimo dos filhos do casal Dantas Bastos.

Quis o destino que eu viesse a contrair bodas com uma menina, mãe dos meus lindos filhos, filha de Dona Marocas – completara 100 anos em março último passado. Dela, Dona Marocas, ouvi relatos de que quando mocinha e meu pai rapazote dançaram muito nas festas da Ribeira do Amparo, arregimentadas por seu irmão Manezinho Guarda, mais tarde, dele colega de ofício no Tesouro da Bahia. Ambos nascidos no mesmo município. Ela no arraial da Boa Hora e ele nas terras confluentes do Rio Quente, dividindo com o município de Cipó.

Homem muito querido, não só pelos seus familiares como também pela comunidade de Nova Soure, especialmente a de São José do Paiaiá, onde trabalhara, constituíra família e morara durante um bom tempo.

Tivera como profissão regular a de Guarda Fiscal do Tesouro da Bahia. Era um cobrador de impostos e trabalhara num pequeno Posto de Fiscalização que havia no Paiaiá, na década de 50 do Século XX.

Mas, era dado a transitar por algumas habilidades pessoais tais como a de seleiro e sapateiro, ambos para consumo próprio. Ele mesmo consertava os arreios dos animais da lida de vaqueiro – adorava cavalgar e ir buscar boi na mata no seu cavalo chamado Ferrinho, sempre vestido a caráter e acompanhado do seu fiel amigo escudeiro Perí, o cachorro rajado que não o abandonava por nada.

As alpercatas de dedo para seus filhos, naquele tempo feitas puramente de couro, alpercatas de tope para uso próprio, ele mesmo as produzia; cinturões, perneiras, gibão, bainhas de facão, bolsas, alforges, lóros, embornais, etc., para tudo isso não se valia de oficiais, usava seus próprios dotes neste ofício.

Ferramentas e materiais sempre bem guardadas: o seu facão corneta finamente embainhado, a faca céza bem amolada, a pedra de amolar, o cavalete de caule de mandacaru, o compasso, a régua, a sovela, a agulha de costurar, o vazador, o martelo, a bigorna; a lixa, o novelo de linha zero, o sebo de boi, a sola, o reio de couro cru, a corda de couro, tudo bem arrumadinho, num quartinho onde depositava seus arreios e onde exercia o ofício auxiliar.

Ainda lembro da minha alpercata – da lavra dele – que chamávamos “de arrasto” feita em couro cru que usei quando menino. Lembrança viva de menino.

Embora naquela época este nome não fosse designativo de profissão, fora também um paramédico. Aplicava injeção. Lembro do caso de uma garotinha que fora mordida por uma aranha caranguejeira (tarântula) e que ele era procurado para lhe aplicar injeções.

Não alisara banco de faculdade, mas era conhecedor e discorria sobre vários temas, a ponto de ter sido um formador de opinião na sociedade onde vivera.

Era um leitor contumaz. Lia muito, obras de grande valor cultural.

Lembro que, quando abrimos o seu bureau de trabalho que mantinha em nossa casa no Soure – a mesma que ainda hoje vivemos – encontramos, pelo menos, duas obras de leitura da sua predileção: uma delas era uma Revista da Seleções do Reader’s Digest (revista americana que passou a circular no Brasil nos anos 40 do século passado) e a outra um livro intitulado O Brigadeiro Eduardo Gomes, Trajetória de um Herói, de autoria do escritor Cosme Degenar Drumond,

Guardei as duas obras comigo durante muito tempo. Reputo meu despertar pela leitura por via destas duas obras. A Revista não preservei, fora logo perdida, mas li muito dos contos americanos nela contidos. O livro guardei-o por muito tempo. Até os anos 90 do século passado estava em meu poder. Emprestei-o a um amigo dele e meu e não me fora devolvido, nem eu procurei busca-lo.

Seu Brito, era muito querido do Paiaiá que o adotara. Chegara a representar a comunidade na Câmara de Vereadores de Nova Soure, eleito que fora pela União Democrática Nacional – UDN, para a legislatura 1955/1958, cessado seu mandato quando da sua morte precoce, em Janeiro do último ano da legislatura.

Nutria verdadeira amizade a muitas pessoas, a exemplo do Seo Pitisco, Seo Bizarro, Zelito de Zé Pequeno – meu padrinho batismal –  Seu Quinha, Seo Zé Pequeno de Sinhá, Antonio Piaba, seus compadres João Paulo, Godinho e Armando, Seo João Pedro e o irmão Seo Ursino – com estes cinco últimos gostava de vaquejar –  e muitos outros que, além de tornar muito extenso o texto se os citasse, não me vem na memória, neste momento.

Da união com aquela menina simpática, com pouco mais de 17 anos, ele 11 anos mais velho que ela, a minha mãe, Maria Ferreira Filha ou simplesmente Mariete, vieram seis filhos: quatro homens e duas mulheres. Cinco deles nasceram no Povoado de São José do Paiaiá e assim anotado nos seus respectivos registros civis de nascimento e um nascera na sede municipal.

Como tenho lembranças daquele homem cordato, solícito, brincalhão, dedicado, sentimental, amado e amante dos seus filhos. Era de uma dedicação ímpar para com seus pimpolhos e incapaz de castigar alguém. Conta minha mãe que, um belo dia ele, com correias finas de couro que as fizera para consertar a sela de montaria, batera de leve no seu filho varão mais velho em repreensão a uma desobediência deste. Ao invés do menino chorar ele é que chorara copiosamente por ter aplicado aquele castigo ao filho.

Um ritual diário, infalível por sinal, marcou em minha mente aquele homem alto, esguio, cabelos lisos e pretos, sempre bem barbeado. Gostava de usar chapéu de baeta, provavelmente o Ramenzoni XXX Cury.

Ao meio dia, todos os dias úteis, ele vinha do trabalho e nós, os três meninos mais velhos ficávamos a lhe esperar na porta da rua. Ao descer no beco da casa de Seu Carmo (Carmo Biscarde) e apontar na rua onde morávamos, acorríamos ao seu encontro e o alcançávamos já em frente à casa de Seu João Caboclinho e Pupúia.

Ele, sorridente e sempre feliz, tomava do maior dos meninos no pescoço, escanchado em seus ombros, e os dois menores – eu um deles – cada qual em um dos braços, chegava em casa com aquela carga prazeirosamente e se agachava para que os seus filhos descessem dos seus braços e dos seus ombros. Um ritual inesquecível!

Acometido de uma patologia não dominada pela medicina da época, sofrera bastante e viera a ser internado do Hospital Santa Isabel, em Salvador. Após sucessivos exames e consumo de medicamentos ao seu alcance, fora informado de que estaria sendo liberado para ir ao encontro da sua família e lhe deram alta hospitalar, num dia de segunda-feira.

Na Bahia dos anos 50, transporte público regular era deficiente. Só encontraria transporte que o levasse até Nova Soure nos dias de terças e quintas feiras, em marinetes (ônibus) da empresa do Seo Zé Mendonça, irmão do bem-sucedido comerciante e fundador da primeira loja de supermercado na Bahia, Seo Mamede Paes Mendonça. As marinetes faziam a linha Salvador até Jeremoabo.

Como só viajaria na terça-feira, obtivera permissão da administração do hospital para que lá dormisse e que o pessoal da enfermagem o acordaria na madrugada para ir à rodoviária, embarcar com destino a sua casa.

Mala toda arrumadinha; toda a roupa pacientemente dobrada e armazenada juntamente com os exames de raio X, receitas médicas, medicamentos, etc., era só aguardar o raiar do sol da terça-feira 28 de janeiro de 1958 e arribar pro Soure.

Quando o pessoal da enfermaria, como combinado com a administração do hospital, fora lhe chamar para tomar a marinete em viagem pro Soure e rever sua mulher, filhos e amigos, ele já havia empreendido uma outra viagem; viagem sem retorno, sem necessidade de compra de passagem, sem paradas em pontos de apoio – fora chamado pelo Pai Celestial para abrilhantar a festa do Seu Reino e compor sua equipe de almas bondosas.

Seu Brito já estava morto para o mundo profano e vivo para o mundo cristão!

Minha lembrança de quando chegara a notícia, na casa de meu avô Zezinho de Romão – de muitas e muitas saudades – na sua roça situada aos fundos do Povoado do Paiaiá, é de ter avistado o Prefeito de então, mais tarde meu amigo dileto, Dr Manelito (Emmanoel Ferreira da Silva) e Abidão (Abdon Joaquim de Santana), que foram levar a fatídica notícia a nós todos, seus familiares.

Tarde de muito choro, lamentações e tristeza e nós a aguardar a chegada daquele corpo inerte; bem vestido, trajando um paletó azul marinho, gravata elegante, cabelo engumecido e bem penteado, barba bem escanhoada e feição de como a sorrir de prazer por chegar em nova morada, com novos desafios e nova missão – cuidar de todos nós, ser nosso representante lá em cima, dali em diante.

Com ele já houvera o encontro entre o seu filho varão mais velho – o que era escanchado em seus ombros, nos meios dias diários daqueles emocionantes encontros aqui na terra –  fora chamado ao seu encontro há mais de quinze anos. Nos deixou bastante saudades também; mas cuidara de resenhar sobre nossas vidas terrenas e lhe dar notícias dos seus que aqui ficaram.

Imagino que a emoção invadira demasiadamente aquelas almas, agora dedicadas a um novo ofício.

Tonho do Paiaiá – comemorando o centenário do seu pai

O “vira-lata cultural” de Geraldo Prado

Vira Lata Cultural -pq

Dizem que quanto mais ficamos velhos, menos dormimos. S’é mentira ou s’é verdade não sei!

Sei mesmo que, por vezes, me pego acordado na madrugada e passo a ler tudo que me seja possível.

Hoje nesta madrugada, a dois dias do final de novembro de 2015, leio uma escrita magistral, do não menos magistral Professor Geraldo Prado – do Paiaiá como eu – homem que tem dignificado aquele torrão e o levado ao alcance do mundo literário, televisivo e outras mídias.

Geraldo, alegando sua insônia, tem premiado a nós todos com textos primorosos; fruto do que usa para afasta-la, no cotidiano.

O professor, na sua narrativa, optara em discorrer sobre a sua meninice no sertão, com o cuidado de alertar que o texto e o episódio interagem com a Biblioteca do Paiaiá, para nos falar do seu velho cão – de nome Cação – que não pudera levar consigo, na viagem que empreendera em busca do sucesso, para a Cidade de São Paulo na década de 1960.

Numa narrativa leve e frugal, o vira-lata Cação em busca de sua Baleia determinara o título do seu conto como “Meu primeiro triste conto de saudade do sertão”.

Quis mesmo, de imediato, fazer um comentário na rede social onde fora publicada sua narrativa. Mas, me contive. Arrisco-me, então, em escrever um texto em solidariedade ao insone Geraldo, para lhe dar conta do que acontecera com os piscis (Carolus Linnaeus, 1707 – 1778, em português Carlos Lineu) e os cetáceos caninos do seu conto.

Traço uma paródia – sem objetivo sarcástico, obviamente – narrando ida ao seu encontro e consequente retorno do pisci-canino Cação, na companhia da namorada, cetácea-canina Baleia.

Geraldo estava cônscio de que Cação não mais voltaria a vê-lo; afinal São Paulo é um mundão em tamanho além da distância, digamos, inalcançável aos dois caninos.

Mas não foi bem isso que ocorreu. Cação tomou de sua Baleia e saiu, sem lenço e sem documento – talvez tal atitude tenha inspirado o Caetano a compor a célebre música – em busca do encontro com Geraldo, na cidade que não dorme.

Desnecessário dizer do insucesso do casal canino aventureiro. Desta forma, não havia outro caminho senão o retorno ao velho, amado e sofrido Paiaiá, e o fizeram sob intempéries, fome, sede, maus-tratos, enxotamentos, xingamentos, etc.

Ponto de chegada na cidade e de largada em retorno ao sertão, o Parque Novo Mundo conhecido local onde ficavam estacionados os caminhões do norte; fora escolhido por conta do anseio de encontrar alguém que conhecesse o Geraldo e lhes desse notícias ou os levassem até ele.

Tal como os bandeirantes, escolheram seguir pela margem do rio Tietê e se foram. Tomaram o rumo do Paraíba do Sul com direção à sua foz. Tinham certeza de que alcançavam o estado do Rio de Janeiro.

A esta altura já não estava somente o casal. Mas, nada de prole. Haviam despertado compaixão e interesse em outros piscis ao longo da caminhada-nado.

Ainda em São Paulo alcançaram o rio Ribeira do Iguape e foram seguidos pelo dourado; logo próximo à foz do Paraíba do Sul foram acompanhados pelo robalo. Nas Minas Gerais tomaram a margem do rio Jequitinhonha, mas sempre procurando o rumo que os levasse ao sertão da Bahia. Nem cogitaram passar pelo Rio Doce. Souberam que seu nome-paladar mudara por conta de um acontecimento-crime perpetrado por uma mineradora cruel e de administração insensata. O rio estava amargo e morto; morto como o Fogo, de José Lins do Rêgo.

Seguiram adiante, rumo ao seu (deles) sertão. Num breve tempo, se viram na Serra da Canastra e beberam água límpida na nascente do Velho Chico. Descendo o rio São Francisco, já contavam com a companhia do surubim.

Preferiram tomar o rumo do Rio Itapicuru – no período colonial denominado Rio São Jerônimo – e foram parar nas bandas do Piemonte da Chapada Dimantina, município de Jacobina, onde está sua nascente. Neste rio ganharam a companhia de xiras, mandís e piáus e rumaram em procura de sua foz. Forçosamente haveriam de passar nas margens onde são banhados os municípios vizinhos Olindina e Nova Soure, o destino da caravana.

Um dilema: teriam que chegar ao Paiaiá e por lá não passa nenhum rio. O local mais próximo do rio Itapicuru, Carrapatinho (divisa entre Olindina e Nova Soure), fica a 8 km do Brejo – fazenda nos arredores do Paiaiá – ponto de partida com destino a São Paulo e local da moradia originária do Geraldo e seus familiares.

Buscaram orientações e passaram a caminhar-nadar, daí em diante em riachos, alguns perenes outros não.

Descambaram para o riacho da Várzea entre os municípios de Olindina e Nova Soure e foram se parar no açude da Varzinha; alí passaram a ter a companhia de um caboge (Callichthys callichtys).

Rumaram para o açude do Seremão e ganharam a simpatia de duas traíras, uma delas tão velha que já usava óculos. Pegaram o riacho paiaiá para chegarem ao ponto de destino, o Brejo.

A matilha-cardume encantava a todos pela sua organização e solidariedade.

Dois bem-te-vis gamela empreendiam voos rasantes, a sinalizar a caminhada-nado, como se fora “batedores” de veículos de grandes envergaduras transportando equipamentos para montagem de usina de energia eólica.

Os quero-queros (tem-tem ou espanta boiada), com seus silvos breves e longos, organizavam a parada do trânsito nos locais de mudança de rumo, como se fossem verdadeiros guardas de trânsito.

Uma revoada de anús, brancos e pretos, tomava a dianteira como anunciadora do comboio canino-pisci.

Chegada triunfante à Biblioteca do Paiaíá. Uma verdadeira apoteose; coisa jamais vista nessa terra.

Os pássaros a chilrearem sem cansar; os cães a latirem em dobrados, tal como os dos sinos da igreja; o vento chamando a chuva p’ra dançar, causando ciúmes à montanha. E o povo, efusivamente, aplaudia de pé.

Cação, todo prosa e de braços dados com sua Baleia, tomava a dianteira da caminhada-nado. Os piscis sempre borrifados pelo cetáceo companheira do chefe da matilha-cardume, para aplacar o calor e lhes garantir a sobrevivência, até que fossem recebidos por Vadinho de Nelito de Dolí e Francisco de Caçula, com o objetivo de fazerem rancho na Biblioteca do Paiaiá, em descanso, até chegar o momento da ida ao Brejo em busca do Geraldo.

Chegaram sãos e salvos, alguns debilitados, certo, mas sem maiores intercorrências.

Só uma decepção para o casal canino-pisci, não encontraram o Geraldo, mais uma vez.

Ele estava em viagem de lazer-estudo-trabalho à Escandinávia e Países Baixos, garimpando recursos para implementar novas frentes de ensinamentos aos leitores, frequentadores e admiradores da Biblioteca do Paiaiá e da população em geral.

Fala-se que Cação e Baleia, embora predadores naturais, se recusaram a caçar preás e outros pequenos animais para o sustento deles; fala-se que o cardume e a revoada que os seguiram e ovacionaram vão ficar para o evento do início do ano de 2016 que tem como tema central a proteção aos animais.

O Natal na Biblioteca do Paiaiá será uma festa diferente e alegrada pelos protagonistas desta inesquecível viagem.

Tonho do Paiaiá

Em, 28 de novembro de 2015

Seo Vereador, vosmecê tem o protocolo? Pergunta o eleitor

Prefeitura do Soure

Era o ano de 1954. Haveria Eleições Municipais livres no Brasil, já democratizado e após a morte do seu Presidente, Getúlio Dornelles Vargas, que embora tenha sido ditador no período de 1930/1945, se elegera democraticamente em 1950. O município de Nova Soure, na Bahia, elegera, em primeiro mandato, um jovem Cirurgião Dentista, Dr Emmanoel Ferreira da Silva –  o caçula do clã dos Ferreira – para dirigir os seus destinos na legislatura 1955/1959 – naquele tempo a transmissão do cargo ocorria no mês de fevereiro.

[Retificando: a transmissão do cargo ocorrera em 07/04/1955, por força da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral nº 4.648, de 27 de janeiro de 1954]

Como qualquer município de pequeno porte, tal qual o nosso, os Vereadores seriam eleitos apenas na condição, digamos assim, de título honorífico, embora investidos no múnus de legislar e no ônus de servir. Não havia remuneração para o exercício do mandato, a eles confiado pela sociedade.

Dr Manelito, assim amistosa e carinhosamente tratado pelos seus munícipes, era irmão do primeiro prefeito eleito democraticamente em Nova Soure, José Ferreira da Silva – Seo Juca ou simplesmente Seo Juquinha. Também era irmão do ex-prefeito, por duas legislaturas (1938 a 1945 e 1955 a 1959), de um dos mais ricos municípios da Bahia – a Itabuna do cacau – o primogênito do clã ferreirense, engenheiro civil, formado na Escola Politécnica da Bahia, Francisco Ferreira da Silva – Ferreirão, como assim era conhecido, considerado um dos melhores prefeitos da história daquele município.

Nessa legislatura, fora eleita Vereadora Dona Morena, a Professora Maria de Lourdes Ferreira da Silva, tendo sido escolhida para presidir a Câmara dos Edis.

Vê-se, assim, que a Família Ferreira tinha, além da vocação pelas prendas educacionais, a vocação política – era a única família na região a contar com quatro filhas diplomadas Professoras, pelo Instituto Normal da Bahia.

Dr Manelito, iniciante em administração pública, sucedendo ao prefeito Ramiro Vieira, homem nascido no Junco (Maiada da Pedra), hoje Sátiro Dias, que fizera uma administração elogiável e em continuação ao que iniciara Seo Juquinha, cuidara de organizar os serviços públicos do nosso município, bem ao seu jeito de agir – com parcimônia, com atenção e com educação ímpar, aliás marcante na sua alma de homem e amigo.

Consta que entre os Edís eleitos naquela legislatura, estava um senhor de moral ilibadíssima, cordato, homem próspero – de poucas letras, mas de uma inteligência invejável – que representava um dos Povoados existentes naquela época. Além de ser um fiel escudeiro e defensor no Prefeito eleito, o assessorava nas questões do trato com a terra, na lida com o rebanho e na manutenção dos serviços da fazenda do alcaide.

Para os moradores daquele povoado e da região circunvizinha foi uma vitória dobrada. Elegera o candidato a Prefeito e, de quebra, um seu representante na Câmara Municipal, um Vereador “da gema” como se diz. E não foi um mero vereador; foi um vereador com fácil acesso ao prefeito e com raízes muito fortes de trabalho e amizade – foi, como se aplica a esses casos, “a sopa no mel”!

Administração iniciada, o prefeito Manelito não descansava. Projetara e começara a executar a reurbanização da Praça Nossa Senhora da Conceição – a principal da cidade – e, delegara aos vereadores dos povoados que lhe trouxessem as reinvindicações das suas comunidades, ouvidos os habitantes evidente e independentemente de preferência partidária desses.

Em verdade, esses vereadores eram, digamos assim, os subprefeitos, embora não formalmente nomeados, nem reconhecidos como tal.

Mas, pouco importava, se as distâncias entre as localidades e a sede; as dificuldades de transportes e as inoportunidades de falarem com o prefeito, fizessem com que os munícipes dessas localidades sempre se valessem dos seus vereadores; seus representantes, para as reivindicações do necessário. O importante era que estas reivindicações chegassem ao gabinete do alcaide. Era este o propósito.

As reivindicações não cessavam. Ora era a limpeza de um corredor – estrada de boiada, de carro de boi, carroçal; ora era a limpeza de um tanque; ora era a preparação para a festa do padroeiro ou padroeira da localidade e, outras tantas reivindicações.

Os interessados, sempre nos dias de feira livre nessas localidades, procuravam o vereador para apontar o que estava necessitando nos arredores da sua morada ou da sua roça.

O vereador selecionava, ao seu entender, o que era possível cobrar do prefeito. Não queria incomodá-lo com pequenos pedidos, alguns, para ele vereador, descabidos. Dessa forma, era de se prever que as nem todas as reivindicações chegassem ao conhecimento do administrador municipal.

E lá se vinham os comunicados, pedidos, reivindicações:

  1. “seo vereador, o corredor que vai pros lado da Ribanceira de Baixo tá quase fechando. É preciso mandar roçar” – resposta imediata: “já requeri ao prefeito, meu fio”
  2. “seo vereador, o tanque da Pimenteira Salgada tá que é lama só; precisa de limpar antes que a chuva chegue” – mas uma resposta pronta: “já requeri ao prefeito, meu fio”
  3. “seo vereador, aqui tá precisando de um curral de matança (abatedouro de animais) por que a feira tá crescendo e vai ter que matar mais gado” – mas uma resposta pronta: “já requeri ao prefeito, meu fio”

Os pedidos se avolumavam. O prefeito não tinha conhecimento deles, óbvio. O vereador não queria “incomodar com coisa pouca”. As respostas, sempre prontas e sempre as mesmas, pareciam já não mais convencerem aos interessados.

Mas o vereador era uma pessoa tida na mais alta conta; um homem digno e respeitado; uma referência entre os moradores daquela região. Quem se arvoraria em questioná-lo em desacordo? Ninguém, óbvio.

Mas, nunca se sabe. Aqui acolá era esperado o momento de se saber qual a decisão do prefeito em relação aos pleitos dos eleitores. E não estava longe de acontecer.

No próximo mês, estaria sendo realizada a romaria religiosa no povoado e o senhor prefeito deveria estar presente. Aí era só alguém se aproximar e saber do prefeito quando seria limpado o tanque da Pimenteira Salgada ou roçado o corredor da Ribanceira de Baixo.

Lá um belo dia, no barracão onde se realizava a feira livre, estavam algumas pessoas numa conversa bem amistosa e alegre; afinal as risadas dobravam. Entre essas pessoas o vereador cumprimentando um e outro; quem chegava; quem saia.

Zeca Bico Largo, um dos reivindicantes dos serviços apontados, tinha acabado de chegar para fazer a feira. Arriou o boca-pio na banca de carne de João Quarto Doce, se integrou à roda de conversa e, lá pelas tantas, se dirigindo ao vereador lançou a pergunta: “seu vereador, o prefeito já mandou limpar o corredor da Ribanceira de Baixo? Daqui três semanas tem a romaria do padre e minha famía qué vim pra cá. Do jeito que tá o carro de boi num passa”.

A clássica e conhecida resposta pronta, “já requeri ao prefeito, meu fio” soou em alto e bom som.

Assim de lado, como não quer nada, escutando toda a prosa e atento ao que ali se conversava, um rapazinho franzino, estudante da escola rural, se vira para o vereador e lança a pergunta: “seo vereador, vosmecê tem o protocolo deste pedido?. Porque todo domingo eu fico por aqui e sempre escuto o senhor dizendo aos seus eleitores ‘já requeri ao prefeito, meu fio’; no outro domingo, vem a mesma queixa, a mesma resposta e, ao que parece, nenhum serviço foi feito ainda”.

Todos ficaram assombrados. Quem este rapazinho atrevido que faz uma pergunta dessas ao vereador? Seria um “pau mandado” da oposição? Será que é de fora – num é daqui e veio atazanar o juízo do vereador? Silêncio total. Fôlegos presos à espera de uma reação esbravejante do perguntado. Assim se portaram os presentes à roda de conversa.

Mas, o vereador, sério e respeitado como sempre o foi, não perdeu sua condição de formador de opinião e elo de ligação entre a comunidade e o prefeito. Não podia revelar a real situação do encaminhamento das reinvindicações – isto comprometeria seriamente sua carreira política e a do prefeito, seu aliado.

Com parcimônia e em tom apaziguador, passara a mão na cabeça do jovem perguntante e lhe respondera: “é o máli meu fio, é o máli. Foi tudo bocoriamente”.

Tonho do Paiaiá – entre o Dia de São José e o início do outono de 2016.

Causos da vida política em um povoado – não se faz referências nominais às localidades e a algumas pessoas, em respeito a cada uma delas e suas famílias, também para não dar margem a pretensas identificações.

https://tonhodopaiaia.wordpress.com/seo-vereador-vosmece-tem-o-protocolo-pergunta-o-eleitor